sexta-feira, 23 de setembro de 2011


PALAVRAS E VENTOS 

Caros leitores, depois de quase três anos escrevendo aqui neste espaço, chega aquela hora denominada despedida. A flutuação das coisas trouxe minha vida para o Rio de Janeiro e, embora esteja enlaçada com Joinville, é preciso seguir o fluxo. Ver os presentes que flutuam em todos os movimentos. E como não estar feliz quando o presente extrai o que nos passa pela alma? Foi isso que, sobretudo, recebi com o presente de estar aqui: a oportunidade de, a cada quinta-feira, extrair o que assoberbava ou assolava. Fosse a chuva sobre o transparente do meu guarda-chuva ou a folha que redemoinhava na calçada. Presente sem preço. E por falar em presentes e coisas que redemoinham ao vento, penso em uma miniatura de fusca para colocar na estante, um livro com palavras que já li, uma comida preparada com especiarias leves ou um sabor inusitado no meio da maionese. Um sorriso largo em uma foto ou os cabelos voando com o vento. Uma paçoca, um pé-de-moleque ou aquele doce de flocos de arroz. Quantas coisas pode haver para se dar para alguém? Um torpedo enigmático pelo celular, um texto qualquer no jornal da cidade, uma letra de música. Dizer palavras ensaboadas, com cheiro de côco, e depois dizer as mesmas palavras enxaguadas em amaciante de roupas. Quantas voltas se deve dar para atingir alguém em cheio? Para estar na praia em um ponto qualquer onde somente ele saiba e ficar lá esperando só para deixar claro que não há nada que se possa fazer? Quantas vezes os olhos podem escorrer como manteiga por detrás dos óculos escuros sem que ninguém saiba? De quantas tentativas se pode lançar mão para alcançar o céu com as unhas e tentar riscar ou perfurar para encontrar o azul? Eu talvez pudesse pensar em mais coisas, mas o fato de ser meio de setembro anuncia a chegada próxima da primavera e contorna momentos de despedida. É com esses pensamentos que me servi de palavras com o intuito de transpassar rios e mares, descer e subir por estradas e ladeiras, redemoinhar em bueiros e entrar por soleiras de portas. Em quase 150 textos, toda semana eu enviei palavras que entraram sorrateiras e desordenadas por vãos de porta, que repousaram sobre mesas nos cafés da cidade e me conectaram com pessoas que me receberam sempre com muito carinho. E como alguém já disse, fiz isso com prazer lexotânico. E por falar em palavras jogadas ao vento, outro dia, depois de devorar uma paçoca, fui até a lixeira na esquina da rua para jogar o papel. Não é que bateu uma lufada de vento que desviou meu gesto e fez o papel alçar vôo sem que eu pudesse alcançar? Pois é. Palavras e papéis de paçoca estão no vento junto com partículas de tudo que pode haver nos encontros, nas chegadas e nas partidas, na boa surpresa que o contato pode propiciar. E foi isso que eu tive aqui. Obrigada e um grande abraço a todos. Continuaremos a nos ver nas curvas dos ventos.

terça-feira, 20 de setembro de 2011


O GRITO

O 7 de setembro de 1822 já passou. 189 anos atrás. Mas a simbologia atravessa os anos. Cantar o hino. Hastear bandeiras, desfile de tropas e de estudantes. Lembrar e pensar o quanto esta data, mais do que comemorativa de um fato, exprime o desejo de uma nação. O ato de Dom Pedro é repleto de controvérsias históricas que não cabe aqui falar. Quero dizer é da importância do simbólico na comemoração do dia. E não é à toa que faço isso uma semana depois da data. A despeito de como tenha sido decretada a independência, penso no que isso representa pra nós hoje. No que significa viver em uma nação independente e que tenha força e competência para trilhar esse caminho. Bem sabemos que a independência é um ideal. Não é real porque não existe independência por si só e sim a que se estabelece no contato, nas inter-relações, no jogo de direitos e deveres e tantas outras coisas. No ceder e avançar das diferentes frentes, dos diferentes lados. E isso pode acontecer de forma equilibrada ou não. Enfim, a declaração de D. Pedro envolvia o interesse de muita gente. Pactos com uns e rupturas com outros. E se foi ele que apareceu quando se abriram as cortinas, as coxias e os bastidores fervilhavam. Como se sabe, se o grito do Ipiranga não libertou efetivamente o Brasil, cada bandeira hasteada no dia 7 de setembro aponta para a simbologia do desejo de cada brasileiro e que vai se reconfigurando na passagem no tempo. Vão se ajustando as velas. E isso não ocorre sem embates. Isso se faz com a consciência de que sempre haverá interesses em jogo, e com o conhecimento de que é preciso que o povo detenha consciência política para engajar-se em um desenvolvimento sustentável, organizado e equilibrado. Para que possam ser promovidas mudanças que culminem em uma nação humana, soberana e agindo em inter-relação com outras nações.  D. Pedro I, montado em seu cavalo, desembainha, ergue a espada e proclama: “Independência ou morte”. Um ideal em contraposição ao real. Seja como for, 189 anos depois a simbologia resiste. Por isso a razão dessas datas existirem e serem comemoradas. Porque a simbologia permite que se atravesse o real. Com todas as suas circunstâncias e inconstâncias. Com toda a problemática que pode haver nos enfrentamentos. É só daí que esse sonho de independência pode tomar corpo como algo mais próximo do real. A independência de uma nação está atrelada à independência do indivíduo, coisa só possível mediante o livre acesso à educação e ao conhecimento, entendendo-se aí a concretude de coisas básicas como saúde, alimentação e transporte. É a partir da existência de cidadãos-pessoa que o verdadeiro grito de independência de uma nação é dado.  

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A MINHA, A SUA, A NOSSA ESTÉTICA

A MINHA, A SUA, A NOSSA ESTÉTICA   

De frente para o espelho, penso no formato que as coisas têm. No que tentamos moldar. Minhas unhas, por exemplo: elas tinham um formato antes que alicates se metessem nas cutículas alterando o seu desenho. Talvez por permear esse estranho período eu pense agora que somos máquinas. Máquinas de usar e ser usadas. Por outros e por nós mesmos. E por mais que vozes queiram se instaurar contra isso (até aquelas que vêm de mim mesma), não há mal nenhum nisso. Somos máquinas comandadas por um cérebro, por um inconsciente e por um coração que não mora bem no meio do nosso peito. Se o tempo é a acumulação contínua dos segundos, eu projeto meus sonhos para construir. Para costurar e representar "idéias" que possam traduzir algo qualquer que está mais além e que nem sempre eu posso ver. Algo que, entre outras coisas, tem também uma estética. Se, como dizem, "não importa ser; há também que parecer", é interessante também pensar que nosso ser também se pauta por 
intencionalidade e criação: seguimos por aí subindo e derrapando em ladeiras. Andamos a pé e de avião. De carro e carrinhos rolemã. Saltamos com ou sem para-quedas e nos estatelamos ou não no final de cada percurso. Com mais ou menos escoriações. Somos máquina e matéria com digitais específicas e por vezes mais de um registro de identificação. Com contas aqui, no exterior ou mesmo sem absolutamente nenhum dinheiro no banco. Nenhum tostão dentro dos bolsos. Nus sem mãos no bolso. Não importa. Entre a possibilidade de uma vontade que é potência, por baixo ou por cima de qualquer escombro, somos portadores de sentido e é aí que vem a estética. A modelagem. O quanto o mergulho nesse ato pode nos afundar ou fazer emergir é coisa que não se sabe. Mas sei bem que em algum momento devemos introduzir uma separação, um corte qualquer para canalizar o desejo e dizer: agora eu vou. Com mais ou menos luz. Nessa ou naquela linha. Seja como for, até o formato de minhas unhas indicam uma coisa qualquer que é relativa ao meu desejo e que me estrutura em meio a um vazio e alguma névoa. O vazio que me estrutura, seja eu um monumento em pedra e cal ou um painel misto de opacos e transparências;  mais ou menos nua, mais ou menos sólida. O fato é que sou criatura de desejos. Que interpreta e é interpretada diante do insondável nas relações. Diante dos desafios. Os meus e os de qualquer pessoa. A estética? Bem, é algo que se liga ao novo e que se produz no laço. No contato. Se for criativo, melhor.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011


VAZIOS, SUPER E ANTI-HEROIS

Dia desses me vi a pensar em super-herois e em mundos de fantasia, onde a principal protagonista, parodiando a língua do espetáculo, é a espetacular, a majestosa, a surpreendente... Imaginação. Aquele lugar onde o inconsciente tem voz e palco. Que espaço mais absoluto os super-herois, esses seres sobre-humanos poderiam ocupar? Se há quem possa estar na base das cenas da ilusão e de toda uma sorte de desejos, esses são eles. E o bacana com relação aos super-herois é que suas aventuras expressam fantasias comuns a algumas pessoas ou grupos, e isso carrega o conceito de uma questão que também é do campo da energia. O desejo de poder, por exemplo, é uma das expressões de desejo inconsciente que ganha asas no mundo da fantasia, onde, quase sempre, não há farol vermelho. É lá estão os super-herois rompendo os limites e atuando na busca de valores como justiça e defesa dos necessitados. E é lá então que se vêem coisas como voar, virar pedra, água, fogo, elástico, rede e tantas outras manifestações. Tornar-se invisível, por exemplo. Seja como for, mesmo o mais destemido dos super-heróis possui pontos fracos. Quem não conhece a temível criptonita para o super-homem? Ou, o que seria da Mulher-Maravilha sem seus braceletes? Como se isso não bastasse ela ainda tinha um avião invisível! Enfim, a imaginação é que é um presente. Eu cresci, a Mulher-Maravilha não é mais minha heroína e eu mesma é que tenho que dar conta de descobrir meus super-poderes reais e imaginários para lidar com o dia-a-dia. Isso me coloca no ponto que eu pretendia chegar: Falar de um super-herói que conheci em 2006 e que desde então, sou, absolutamente, fã. Ele é o intrépido, o corajoso, o poderoso, o super, o ultra Super Empty!!! Quem não conhece, segue a sugestão para buscar conhecê-lo. Mora em um livro publicado pela Editora Planeta, de autoria de Luciana Pessanha e José Carlos Lollo.  Um livro branco com um furo na capa. Uma ótima ideia que representa muito bem o super-heroi que traz um buraco, um furo, um vazio, bem no meio do peito. Buraco que depois de incontáveis desventuras, ganhou um E lá dentro para representar o heroi. Ou o anti-herói. Não faz mal. Ele conhece o poder das palavras que nem sempre funcionam, ele fracassa, ele deprime, reconstitui-se e o principal, descobre que através do seu vazio pode enxergar possibilidades de ver mais além. A partir daí atua sobre as perguntas e perguntas sem fim que as pessoas se fazem. Como dizem os autores, não se chama o Super-Empty em casos urgentes como incêndios, crimes, barragens se rompendo ou vilões ameaçando a humanidade; dado que para isso existem os bombeiros, o exército, a polícia e até outros heróis. Super-Empty atua em funções praticamente insolúveis, mas ele senta ao seu lado e mostra como é olhar além. Olhar através dos vazios que temos e enxergar possibilidades. E o melhor: faz isso em 127 páginas deliciosamente ilustradas e repletas de bom humor. Ele é, sem dúvida, uma deliciosa caricatura do desejo de Luciana e José Carlos que descortinam uma heroica maneira de pensar em heroicas soluções para certos estados de caos que desabam vez por outra sobre nossas cabeças. É bem aí que o Super-Empty pode aparecer.


sexta-feira, 26 de agosto de 2011


O BALANÇO DE CECÍLIA

Quando a mãe de Cecília perde sua calça preta e a carteira de motorista, não sabe se a carteira está no bolso da calça ou mesmo se estão no mesmo lugar. Sabe apenas que estão perdidas. Procura em lugares possíveis. Também nos impossíveis. Telefona para os filhos e perscruta com afinco seus últimos 6 meses. Nada. Conversando com Cecília, diz: “Filha, olha bem aí na sua casa que eu posso ter deixado cair atrás de algum móvel. Ah, sei. Você arrastou todos os móveis na limpeza da última semana... E aquela bolsa que eu usei quando estive aí? Você lembra? Ah, andou vendo isso ontem mesmo? Não achou nada... Está certo. O quê?”. Ouve a filha dizer o quanto isso é simbólico. “Não vê a contundência do desejo que está expresso nesse sumiço, mãe? A calça, que guarda suas pernas que andam, está desaparecida junto com a carteira de motorista, que é seu passaporte para dirigir e dirigir-se aos lugares. Elementar, caro Watson. É um claro indicativo de que calça e carteira estão juntas na mesma empreitada. São átomos se movendo para mostrar a direção que você deve tomar. Ir embora da sua vida para outra vida a ser conquistada. Esquece o sumiço das coisas e pensa nisso. É muito claro, mãe. Claro e simbólico”. Riem-se. Cecília é moça que não gosta de meio-termo. Meia-ação, meio-honesto, meio chateado. Gosta de sentimentos inteiros. Por isso não cansa de afirmar aos seus alunos que não existe essa bobageira de não se usar todo o potencial do cérebro. A cada momento e para cada coisa, usamos 100% do nosso cérebro. Agora, qualitativamente, isso pode sim variar. De modo que ela gosta mesmo é da inteireza de Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim como em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”. E por mais que ela seja recoberta de vazios de todos os tipos e ria muito ao acreditar ser muito mais que um barco furado, assume também a inteireza de seu desejo. Diz: “Sou um barco metralhado”. O mesmo quando admite sua paixão por Fred e sonha carnavais inteiros com ele. Os dois deflagrando ruas e êxtases. Chora a falta quase absoluta que o sorriso dele lhe faz com toda a circunstância de seu exagero. “Morro sem ele”. Mas para não se evadir completamente da brincadeira que ela adora de por e tirar os pés do chão, vai vivendo feliz e triste, inteira e despedaçada e de muitos outros controversos modos. Vai domando a vida no laço e se ajeitando com a flutuância das coisas. Vai rindo a vida que não é sempre engraçada. Quase todas as tardes ela senta em sua cadeira de balanço. Uma cadeira de diretor com balanço onde sua avó sentava e dirigia, balançando, a vida da família inteira. De onde mais poderia dirigir os espetáculos que ela e Fred descortinam? Agora mesmo ele está contando para ela o seu dia de trabalho, e tem sempre um momento no meio da fala em que ele desata a discursar. Então Fred fala tanta besteira que não há outra maneira de resolver a situação que não seja tomando medidas de emergência: súbito ela inclina na cadeira e beija-o emergencialmente para lhe calar a boca. Riem-se e ela volta a balançar enquanto ele retoma de onde se perdeu só para poder se achar no riso dela.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011


CATARINA E A ECONOMIA

Catarina, a moça que tira cópias de sua monografia na sobreloja de um centro empresarial na cidade, pensa na palavra copiar. Ela lembra, quando era mais nova, que copiar era pedir o caderno emprestado para copiar à mão as aulas que tinha perdido. Era trabalhoso, mas eficiente. Um modo de estudar o conteúdo que havia perdido. Pensa que as coisas no mundo estão ficando bem mais simples desde que inventaram a roda.  Até dizem isso em tom de sarro quando alguém está querendo recompor os primórdios de qualquer coisa... e lá vem a frase: “Você quer o quê? Inventar de novo a roda? Na natureza nada se cria, tudo se copia”. Copiam até dinheiro... Nesse ponto ela se assevera. Por vezes lhe parece difícil compreender a economia e as coisas do dinheiro. Ela sabe que quando o governo imprime o papel que todos, inclusive ela, tratam como dinheiro, os juros sobem e acontece a tal matemática que os economistas chamam de inflação. Porque que quando se coloca mais dinheiro no mercado (e isso é uma ideia falsa de que há mais dinheiro em jogo) o que acontece é que a entrada desse dito papel-moeda provoca uma redução no seu valor, ou seja, seu 1 real passa a valer, por exemplo, 0,80 centavos. Mas em relação a que? Ela pensa que devem ter um padrão de estabilidade qualquer... Pensa se é o ouro dos tempos de D. Pedro ou o dólar. Mas se for o dólar, é dinheiro em relação a dinheiro? Quem tem as respostas certas? De tanto ver televisão, Catarina pensa que não importam as respostas e sim as perguntas. E o que a intriga muito são as perguntas... “Quem determina, quem desencadeia, quem deseja, quem impulsiona e faz acontecer?”. Seja como for, depois da era virtual ela não entende mais quase nada. Desde que criaram a palavra crédito, vive-se em ilusão. O que é crédito? É algo que não se pode ver ou tocar e que um outro te dá em nome de garantias quaisquer. E o pior, essa “coisa” virtual compra coisas reais. Catarina explode isso à enésima potência e pensa de quem é essa conta. Minha é que não é! Ela pensa no seu extrato bancário e no dinheiro que está lá. O extrato diz que o dinheiro está lá (e ela pode tirá-lo se quiser), mas ao mesmo tempo, sabe que o banco está usando esse mesmo dinheiro, emprestando para alguém, comprando algo... sabe lá! Quantos são donos do dinheiro que ela pensa ter no banco? Parece é que o valor do dinheiro que ela tem é multiplicado muitas vezes. E isso desde que mundo é mundo porque ela sabe muito bem que houve tempos em que a moeda era de prata, com o tempo foi perdendo a quantidade de prata em sua liga até virar cobre... inflação igual. Ela só sabe, a despeito da monografia que vai apresentar à banca na semana que vem (e isso é bem real), que em tempos de cólera muitas dúvidas emergem e pairam. Depois ficam indo e vindo. Que nem a moda. Agora, por exemplo, talvez quem tenha nascido depois de 80 não saiba a resposta para uma antiga pergunta que volta à baila: quem matou Salomão Hayalla? É ver para saber, ou perguntar para alguém que já sabe. É mais fácil do que saber o que acontecerá com ações que comprou e pensava estar fazendo um grande negócio... Quem, afinal, rebaixou a classificação dos títulos do tesouro americano? Ela é tão introspectiva, mas não pode nem deve ser alheia ao que pensa ser e ao que pensa ter. O seu lastro não pode ser perdido.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011


CÉLIA É UM MAMÍFERO

Célia, funcionária de uma empresa de telefonia móvel, olhando-se no espelho, admite que é um mamífero. Afinal, tem sangue quente e respira pelos pulmões. Quando está na água e usa o snorkel, sente-se inadvertidamente adaptada e em comunhão com as espécies todas que ela descortina. É sociável dentro e fora da água. Olhando a coisa desse modo, pensa que o que de fato lhe falta são nadadeiras. Olha seu corpo com cuidado, os braços e pernas que podem movê-la. As narinas para respirar. Tudo a contento. O que lhe falta mesmo é uma grande cauda, como as baleias. Algo que dê propulsão ao seu desejo de deslocamento. E mais uma grande camada de gordura para ajudar na flutuação e manter o calor. De posse desses itens, não tem dúvida de que atravessaria o Atlântico e todos os mares. Faria grandes travessias e de quando em quando iria emergir e expelir o ar quente e úmido dos pulmões. Daria um show formando colunas de água cada vez mais altas. Sabe que é bom poder habitar e desabitar as profundezas. No caso da baleia, bom e uma questão de sobrevivência quando rondada por caçadores. De qualquer modo, é claro que com essas propriedades, não lhe faltaria o canto e nem sublime audição para se localizar na imensidão dos mares e fazer contato com os seus. Pensa que deve ser por isso que quando canta sente-se absolutamente em comunhão. Lembra de ter lido que as baleias, quando se comunicam em distâncias superiores a que 24 km, fazem essa troca através de uma mesma janela de freqüência. Em função de seu trabalho, faz logo analogia ao verificar que usuários de telefone celular também se sintonizam nas áreas mais silenciosas do espectro sonoro. Atenta para a obviedade do fato de que a comunicação entre as baleias seja feita através de uma mesma janela de freqüência. Sorri. Não pode mesmo haver contato em freqüências desconexas. Há que, minimamente, se o usar o mesmo canal. E nem assim há garantias de comunicação. Frases e palavras podem se perder no canal, irremediavelmente. Pensa que deve ser por isso que as baleias cantam. Porque cantar coloca o eu e o tu na mesma faixa. Deve ser nesses momentos de conexão que a baleia sofre uma alegria insana e salta rompendo a água com seu corpo de algumas toneladas. Quantos segundos ela poderia ficar suspensa nesse desejo, vencendo a gravidade da água? Dizem que nessas ocasiões as nadadeiras, normalmente atrofiadas, chegam a medir até 1/3 de seu comprimento. Elas quase pássaros em uma metamorfose movida pela alegria do contato. Um vôo de puro desejo. Sustentado por esse desejo. Célia está certa que quer comunicar e não tem medo de distâncias. A água tem propriedades acústicas onde o som se propaga mais rápido que no ar, e ela sabe fazer seu espadanar chegar onde quer. Sabe, a despeito do tom quase puro e de baixíssima freqüência com que se comunica, que sua combinação de estalidos é uma espécie de assinatura sonora que a identifica e chega ao seu interlocutor em sequências de pulsos e intervalos. De que modo ela poderia desejar mais?

sábado, 6 de agosto de 2011


DOIS DIAS PARA MARA

Mara está próxima de completar 40 anos e só consegue pensar em princípios de aerodinâmica e combustão. Liga para sua amiga toda afeita em pequenas magias e coisas transcendentais e diz: “Amiga, preciso de uma garrafada! Aquela de aloe vera e formol será que me adianta? Resolve meus problemas?” E a amiga se ri. E se riem juntas. Gisele lhe diz que tudo que ela precisa são dois dias. Sempre e para todas as coisas. Não tem quaisquaisquais. Iniciar um regime, cair na esbórnia, aceitar ou não uma proposta, sair de casa ou mudar de vida. De métodos. Isso principalmente. Dois dias de concentração nessa máxima e não vai ter aloe vera que faça páreo. Formol nem pensar, não é, Mara? Por acaso você deseja, aí bem no seu fundinho, estacionar esse estado de coisas ou qualquer outro? Gisele diz para ela deixar as coisas fluírem, que esse é o segredo. E mais os dois dias, claro. Mara talvez ache muito difícil a transição, o deslocamento. Certas vezes pega seu caderno de angústias, um caderno amarelo que ela comprou especialmente para isso. E escreve e escreve. No início, as palavras saem ajustadamente sem ajuste, mas com o decorrer do desabafo, ela percebe que toma cuidado ao usar as palavras e preocupa-se em não deixar fios soltos. Mas eles lá estão. Tem fio solto em tudo quanto é canto. Tem palavra que ela escreve feito aquelas redes usadas em circos para segurança dos trapezistas. Palavras rede. Mas Mara não percebe que então ela se aprisiona no conforto que certas palavras dão.  Nessas ocasiões ela vê abrir uma fresta no caderno e sente ir com pés e pernas e o corpo inteiro pelo vão. Fecha correndo o caderno. Enfia na gaveta e deixa que ele se esqueça dela. Vai para a praia e corre entrar na água. É quando ela bóia no mar e sente seu corpo mover-se com o ondular da água. Fecha os olhos porque tem desejo de fechá-los e ficar com as sensações ampliadas. Mas a água do mar tem correntes que ela desconhece e então pensa que seu corpo seguirá nesse fluxo. E fica em pé, sai do estado de alguma coisa por ela e retoma o controle. Isso a irrita profundamente, pois tudo fica em evidência quando está suspensa no mar, seja pela leveza do seu corpo, seja pela densidade da água. Até as palavras suspendem e vem uma mudez que a acalenta. Nessas ocasiões olha para as coisas e em tudo vê música e poesia que ela cala por dentro. Feito a borboleta que ela olha agora e que parece pétala, parece flor que dança com o vento. Uma espécie de harmonia entre a força que impulsiona as asas e um viver que é tão fugaz. Um estado de fenômeno que ela leva às últimas conseqüências. Pensa que é isso que Gisele quer dizer com os dois dias. Duas semanas para a borboleta. Dois dias para ela. Um tempo de intensidades antes da transformação de um estado. Antes do vôo que sucede um acúmulo de reservas. Mara sorri sua amizade com Gisele. As trocas, a que continuadamente se permitem. Entre outras coisas, constante metamorfose. Uma espécie de vôo que desloca as coisas de seus lugares e torna a elas depois. Feito vida.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

AMY WINEHOUSE

AMY WINEHOUSE

É verão. Durante a noite a lua estará em seu quarto minguante no Atlântico Norte. Brilhará, ainda que a temperatura tenha caído. Talvez o vento sudoeste que flanasse a 8 km por hora fosse o suficiente para dar arranque nalgum moinho e talvez isso gerasse energia para alguém em algum lugar. Talvez folhas rodopiassem num canto qualquer fazendo com ele uma valsa, uma reza, um pedido. Talvez pequenos blocos de átomos se movimentassem num jogo de agregar e desagregar moléculas. Não importa. Fechando os olhos parece ser possível escutar um canto que vem da alma. Com todo o drama que pode haver em almas. Talvez fosse uma canção Soul, que ironicamente, significa alma. Um gênero de música que nasceu do rhythm and blues e do gospel durante o final de 1950 e início de 1960. Talvez. Não importa. Talvez tenha escolhido o gênero pela imensidão que ele carrega. E conjugou em si todo o desejo pulsante que flui com a melodia. Torvelinho de caos e dores. E fez isso em primeira pessoa. Nem era preciso ver para sentir. Bastava fechar os olhos e escutá-la. Escutar sua voz e letra. Voz e mensagem. A emotividade contida em meio aos ornamentos e aos improvisos. Surpresa e suspensão. Contágio. Musa e mulher. Diva de pés descalços sobre um tanto de angústia e apelo. Interpretação dramática e genuína que nascia de um viver com intensidade. Com excessos correlatos ou não. Um vivenciar de corpo inteiro. Como quem está no mundo e suplica a transposição e a transvaloração das coisas. De zero a 1000 em vinte e sete anos, se uma vida pode, de algum modo, ser medida desse modo ou de um modo qualquer. Não desejava medidas. Desejava a intensidade.  Em alta velocidade desenhou sua história para agora dar sua graça noutras paragens. Teria sentido desabrochar um desejo de inverter o estado das coisas?  Um sopro de sobrevida antes da palavra calar? Antes de a boca fechar? Ninguém saberá. Não bastasse a intensidade da interpretação, escrevia as letras das canções. Escrevia pungências. Tinha coisas para dizer e disse em meio ao vermelho sempre misturado. Sempre como pano de fundo. Até o final. Gostava muito da música Monkey Man, de Frederick Hibbert: . “Nunca vi você, só ouvi de você. Abraçando o grande homem macaco. É mentira sua, é mentira sua. Abraçando o grande homem macaco. Agora eu sei disso, agora eu compreendo. Abraçando o grande homem macaco. la la la, la la”. Cantava em quase todos os shows. Um gosto que talvez falasse dela. Um gosto permeado de estranhezas e com um tom muito familiar. Não importa. Cada olhar para ela desperta os mais diversos estranhamentos. Olhares diversos e, igualmente, de uma estranheza familiar. Não importa, ou pelo menos, não importa mais. A temperatura varia entre 16 e 18 graus.  O céu é nublado e a umidade está em 64%. A despeito da previsão de sol entre nuvens para o domingo, é sábado e ela morre dentro de seu quarto.

quinta-feira, 21 de julho de 2011


OLÍVIA, ULYSSES E AS MANGAS

Quando Ulysses disse para Olívia que ia embora, ela ficou, assim por dentro, tão feliz. Não demonstrou, é claro, isso para ele. Ao contrário, assustou-se, quase indignada. E essa demonstração não era mentirosa, afinal perguntava-se o que tinha dado nele para dizer isso dessa maneira. Ela não podia encher a boca e dizer: “Sou feliz”. Mas vivia bem, achava. Ontem mesmo foram ao cinema, comeram pipoca e ficaram um longo tempo conversando sobre o filme enquanto tomavam um café. Isso sem contar o fim de semana na praia, o sol aquecendo seus corpos em meio ao inverno que fazia na sombra. Ela quase sente de novo o quanto estava bom. De qualquer modo, volta a si e a seus questionamentos. Isso tudo não tem nexo. “Ulysses, isso não faz nenhum sentido”. Não cabe aqui dizer o que ele disse. Foram tantas palavras simples e definitivas que a Olívia coube responder “tchau” quando ele finalmente se encaminhou para a porta e disse um “eu vou – a gente se fala”. Agora, depois de um banho prolongado, ela resta dentro do roupão com os cabelos molhados. O que ela teria feito para despertar nele esse rompante? As palavras que ele disse, somadas, não disseram uma só que tivesse um significado para ela. Mas ela está, finalmente, livre. Isso tem significado. Não está dando pulos pela sala porque ainda está submetida ao arrasto do susto. Amanhã pulará. Tamborila os dedos no braço da poltrona onde ele sempre se sentava. Qualquer lugar na casa agora é dela e mais todo o resto. Livros, discos e os quadros. Todas as coisas de que ele gostava tanto. Arranjará outras coisas para gostar. Olívia tem certeza disso. E ela? Sente um formigamento nas pernas, algo que lhe impulsiona a buscar o celular e ligar para Ulysses. Que bobagem... Esperou anos para que ele tivesse essa atitude e agora vai ligar? Pedir para ele voltar? De jeito nenhum. Pensa nas atitudes que devem ser tomadas quando alguém quer fazer regime. Sentiu fome fora de hora? Tome água. É isso que ele deve fazer. Vai tomar uma taça de vinho e acabará esquecendo esse desejo infantil. É maio e o vinho vai combinar perfeitamente com o que ela vai preparar para comer. Campeia no armário algo que possa lhe servir. Ele ia ao mercado e acabou não indo... Isso, junto com tantas outras coisas, agora será com ela. Deixa o pensamento passar. Espia na fruteira duas mangas exalando cheiro que Ulysses tinha trazido para sobremesa. Quase escuta sua voz dizer que elas olharam para ele e pediram: Me leve! Ele ouvia o desejo das coisas e assim fez. Agora é com ela. Pega uma, descasca e corta em pedaços de bom tamanho. Amassa um dente de alho bem miudinho e doura na frigideira com um pouquinho de manteiga. Doura e refoga ligeiramente os pedaços da fruta. Na cozinha, desfruta da iguaria amanteigada. Sorve a vida entre os dedos. Polpa agridoce e quente. No mais, amanhã ela pensa e resolve. Provando a fruta assim, saboreia o inusitado da vida e sorri ao imaginar o que Ulysses diria da mistura. Ele ia gostar, está certa disso. Qualquer dia liga para ele e convida para jantar. Se ainda tiver a dúvida que tem agora, perguntará também porquê foi embora. E se ele se sentir à vontade, ele diz. Caso contrário, desfrutam a fruta. Para ela está tudo bem.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

SUZANA

Suzana está aguda. Olha-se no espelho e diz com voz firme: É hoje. Olha mais uma vez: De hoje não passa, Su. Afinal, tem que ser carinhosa com ela mesma nessa hora de enfrentamentos. Toma um café mais forte que o habitual e solta todo o verbo de frente para o espelho. Escuta a sonoridade das palavras. Deixa que ocupem o espaço que precisam ocupar. Começa a sentir algo se deslocar dentro dela, mas nem atina com o que vai acontecer. Só dá tempo de empurrar a cachorrinha e se jogar por cima da mesa de canto e dos cacarecos todos que estão lá. Espreme o berimbau contra o canto da parede e sente a haste a lhe esmagar as costelas. Toca o instrumento com as vísceras. Deixa o estrondo gerado pela queda terminar seu ressoar dentro dela e pensa no susto dos vizinhos. Principalmente no de baixo. Fazer o que quê? Armários caem. Isso acontece. Mas não às quinze para as duas da manhã. Continua sobre a mesa pensando o porquê daquele desabar. Será cupim? Bruxaria. Isso sim. Um móvel desse não desaba assim. Não pode ver, mas imagina o espelho de cristal todo estilhaçado. A maçaneta de louça que ela comprou em um brechó em Buenos Aires, idem. Pipoca, enfiada que ficou no canto perto da mesa quando foi empurrada, ainda lá está. Olha para Suzana, com cara de interrogação? Na verdade, o olhar dela parece mais de alívio. Elas se entendem. Um armário ir ao chão é algo muito simbólico. Inda mais aquele armário. Trazia tanta história dentro que pesava toneladas mesmo vazio. E vinha sendo arrastado por Suzana há muitos anos. Era hora mesmo disso acabar. Bom seria se ela o tivesse lançado ao chão. Mas como? O armário, igual certas coisas na vida, era difícil de derrubar. O que ela sentia por ele era um misto de preservação e culpa. Amor e ódio. Devoção e desdém. Então a vida fez isso por ela. Jogou o armário, de angústias e sentimentos controversos, no chão. Suzana, moça que também é muito viajada em si, acha ainda mais simbólico a queda do armário justamente nessa noite. Durante o dia, passou sua hora inteira de análise desconstruindo o armário e tudo que ele significava. Lembra de alguém dizendo que as palavras têm poder. Acha que de fato elas têm. A consubstanciação disso é o armário atravessado no meio da sala. Não fosse agora quase 3 da manhã, pegaria o martelo na lavanderia e terminaria o serviço sabe lá de quem. Martelaria até restarem pedaços de bom tamanho para a lareira e teria uma noite calorosa. Abriria uma garrafa de vinho e poderia sorver, aos goles, sua libertação. A queda do armário. Não tem problema. De uma hora para outra seus pensamentos transfiguraram-se em noite. E o azul da noite seda qualquer coisa nela. A trilogia de Krzysztof Kieslowski diz que a Liberdade é azul. Na noite, a perda de Suzana é azul, e nesse momento, ela pode justapor-se a ela e dizer “está tudo blue”. Adentrar a utópica liberdade da cena. Respirar a queda do armário. Amanhã, Suzana põe toda a madeira para queimar. É lenha, não é armário.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

MARISA E AS PALAVRAS

Marisa é moça leitora, mas não leitora como os leitores de fato. Não lê também como os escritores, que dizem, precisam ler muito. Ela apenas ama as palavras e ama certas formas delas se encadearem. Pensa que algumas palavras têm ímãs para outras, e juntas formam coisas engraçadas. Coisas tristes. Coisas belas. Marisa acha que algumas palavras vêm dentro de uma espécie de saco quando as pessoas nascem. A bolsa estoura e caem o nenê e as palavras... Palavras de tantos tipos. De todos os tipos. De tipos que a gente nem imagina. Talvez nem todas sejam lembradas, mas Marisa acredita que ficam em algum lugar dentro de nós. Um lugar onde procuraremos sempre por elas sem jamais achar. Quais foram mesmo? Essas palavras, Marisa imagina que moram debaixo da pele. Entre a derme e a epiderme. Outras ficam em camadas mais profundas e por isso não se pode pinçá-las a qualquer hora. Diz que é preciso muito cuidado na busca por palavras entranhadas. Os pensamentos por vezes usam as palavras que estão nos subterrâneos. Eles emergem pela força propulsora delas. Marisa diz que são como foguetes disparados por controle remoto dos píncaros de algum lugar. Não se sabe o autor e nem o nome desse desconhecido que aperta o botão. Certos pensamentos vêm e pronto. Não dá tempo de evitar o disparo. Ela diz que é acidente. Simples assim. Por isso Marisa caminha sem parar. Sai de um lugar para ir a outro lugar. Não fossem os carros, ela nem pararia. Acha que certos carros são como os pensamentos. Vêm não sabe de onde e quando se percebe só dá tempo de ser acossado pelo susto. Por isso ela não lê. Ela apenas olha as coisas que estão escritas. Ama as palavras, seus duplos sentidos e os equívocos que se instauram quando fazemos uso delas. Ao passar os olhos por coisas escritas, de quando em quando algo lhe salta. Então ela aproveita o impulso e se desloca. Marisa gosta da palavra “desloca”. Uma palavra bonita que para a física, significa o deslocamento de um corpo, a variação de posição de um móvel dentro de uma trajetória determinada. A porção da trajetória pela qual o móvel se deslocou. E aí tudo muda para Marisa. Nos seus deslocamentos ela subverte a física da trajetória determinada e se ri. Diz que seus passos são, definitivamente, indeterminados e por isso tropeçam no tentar seguir seus pensamentos. Os pensamentos de Marisa voam e ela queria correr mais para voar com eles. Não pode. Lembra-se que eles são disparados pela força das palavras e então deixa que eles deslizem por ela sem tentar prendê-los. Sente o fluxo das idéias e segue. Dobra e desdobra sobre cada coisa. Às vezes estaca. Diz que estacar assusta o foguete dos pensamentos. Libera palavras subterrâneas da pressão de querer sair. Então estaca diante da folha que redemoinha num canto da calçada ou nos olhares que redemoinham seu olhar. Isso é quando ela se deixa capturar e fica muda. É quando ela mergulha em seus recuos. Marisa diz que nessas ocasiões tudo o mais se ausenta. Até o pensamento. E não tem carranca, trator nem alavanca que a faça falar.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

ENTRE ROLL-MOPS E OVOS COR DE ROSA

Uma filósofa de plantão no boteco do Saldanha disserta com o garçon sobre Mozart enquanto manuseia o ovo cor de rosa entre goles da cachaça envelhecida nos píncaros de algum lugar. Francisca, na mesa ao lado, pensa nesse lugar e no homem a extrair o líquido que desce agora pela garganta da mulher e que talvez, deixe sua língua dormente feito perna quando se senta em cima dela e depois tem que esticar e fazer três sinais da cruz como sua avó ensinou – um no pé, outro na canela e mais um na coxa para a dormência passar. Parece ter tanto a explorar essa moça, que não percebe Francisca que a olha, atenta a cada movimento, gesto ou palavra que ela diz ou silencia. Diz ou engole enquanto engole a pinga. Francisca pensa que ela talvez durma atravessada no meio da cama. Porque não é saudável deixar um lado vazio quando não há ninguém mais nela. As pessoas precisam de romance. Precisam brincar. E Francisca, que não é diferente, vai dando asas à sua imaginação. Tem 53 anos, está completamente apaixonada e, assustadoramente, perdeu a necessidade de se proteger. Tem muitos momentos na sua vida e se apropria deles como pode. Transforma as coisas e faz palavra, faz estória. Faz cenas. Que mais Francisca, escritora de peças teatrais, pode querer? Enquanto pensa, tateia a mão pelo queixo e sente o pelinho insistente apontar outra vez. “Eles voltam embora eu os arranque com a pinça!”. Olha de novo a mulher que agora olha para ela agora com os olhos arregalados. Será que escutou seu espanto? Francisca deixa o protocolo na sua mesa e vai até a mesa dela. Leva junto sua porção de roll-mops. Sorri, puxa a cadeira e senta. Posso? A mulher vai direto ao assunto: “Você também tem pêlos no queixo, não é? E quando ele desponta e você o sente entre os dedos, quer extirpá-lo, não é?”. (Sorriem). “Pois é. É assim que estou. Precisando extirpar umas coisas de mim. Colocar um chapéu lilás de enorme aba na cabeça e sair vaporosa no meio da avenida. Dizer bom dia aos passantes e jogar-lhes flores”. Francisca aceita um gole do líquido que a outra oferece e se serve de um ovo rosa. A mulher, enquanto se serve do roll-mops, diz que vai contar o que a trouxe ali no boteco. E conta. “Dia desses saí de casa batendo atrás de mim a porta. Segui passo atrás de passo até o endereço contido num pedaço de papel colorido que uma cartomante me entregou um dia no meio da rua e disse: “Deixa eu ler seu futuro, moça”. Guardei o papel e nem liguei. Eu lá sou mulher de me dar a ler? Meu futuro eu escrevo! Mas um dia sucumbi e bati à porta da cartomante. Mandei que ela colocasse todas as cartas de uma vez. Que começasse do mais imediato. Das urgências da vida, sabe? Meu desejo era contundente e atravessou o olhar da cartomante, que suspensa, dentro do vácuo que eu criava, deitou as cartas sobre a mesa e me leu. Você acredita? O que ela viu eu não fiquei para ver. Antes que abrisse a boca eu pedi licença e saí. Chamei um táxi, pedi para ele me deixar aqui e aqui estou. Muito prazer, sou Antonia. Francisca estende a mão e riem-se deleitando-se entre os quitutes e golinhos de pinga. Desconhecem contra-indicações quaisquer que possam advir de tal combinação.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

CLARA (MENTE) INVERTIDA

Clara está de ponta cabeça no meio da sala. No meio da novela, e nem era propaganda, ela saltou do sofá e foi para esse lugar. O meio do tapete da sala. Achou cabalística a idéia. Posicionou-se para tentar a “invertida”, uma posição da yoga em que se fica de ponta-cabeça. Ela pode não assumir, mas eu sei qual foi a cena que detonou esse arranque. O beijo que tirou seu ar. Natural ela querer fazer a invertida. Oxigenar o cérebro e pegar mais ar para respirar. Não bastasse isso, amanhã precisa estar linda porque Vítor e o resto do pessoal do escritório virão para jantar. Ela adora juntar os amigos e fazer festa, mas queria era puxar Vítor para dentro do banheiro e ficar lá com ele até a festa dos dois acabar. Dado que isto está fora de questão, fica para ela a boa e velha possibilidade de estampar a cara de paisagem. Está tão acostumada a manter o protetor de tela ligado que não sabe ainda como não queimou. Anda já soltando fumaça. Invertida como está, o ideal é que abstraia. Tente pensar apenas na sua respiração ritmada e buscar e desenvolver determinação, tolerância, disciplina, entre outros. Mas ao invés disso, pensa: “Qual o quê? Como posso esquecer que meu único desejo é que ele me arraste para um lugar qualquer e me dê ar?”. Invertida ou não, o celular está ao seu lado e ela liga para Soraia. Precisa desabafar. “Sim, amiga. Preciso urgentemente de uma respiração boca a boca, sabe? Estou tentando me catequizar com a estória de que posições da yoga dão força à coluna vertebral e respondem por manter a saúde do ser humano. Saúde! Garanto a você que se ele me beijar eu saro. Sim, é verdade que também posso ficar doente de vez. Eu sei que a respiração e as posições agem diretamente sobre a produção hormonal. Eu sei que me acalmaria caso eu pudesse me concentrar. Mas como se ele está em tudo que eu vejo?”. O jantar acontece. Clara está tão oxigenada que até sua pele tem outro viço. Vitor nota, diz que está bonita. Ela sorri um obrigada. Sorri obrigada. Queria pular no colo dele. Dar um vexame. Beijá-lo até que ele ficasse sem ar. Ele e todos na sala, não é? Súbito uma idéia. Esparrama o saco de cerejas em cima da mesa e elas vão caindo no chão. Não sabe como, todos vão tentando desviar e nesse tentar vão caindo. Menos ela e Vitor. Não entende o frisson de todos desabando entre cerejas. É bizarro. Estranhamente, como se o tempo congelasse, ela e Vitor estão absurdamente atracados pelo olhar. E todos atados ao chão e às cerejas. Isso não está acontecendo. Só pode ser resultado do exercício. As inversões proporcionam ao praticante mudança radical na sua forma de ver as coisas. De estar no mundo. Afinal, ver tudo de pernas para o ar desbaratina a pessoa! A percepção visual se altera e dizem os manuais que pode até promover maior tolerância e adaptabilidade às mudanças. Deve ser isso que acontece agora com ela. Isso tudo é efeito da invertida. Lembra quando começou as aulas. A dificuldade que tinha. Agora, só consegue escutar as risadas e o cata-cata das cerejas. Nem percebe quem lhe mete uma delas na boca e volta ao chão para pegar as outras. Estoura a fruta dentro da boca sem tirar os olhos de Vítor que não tira os olhos dela. Fruto sumarento essa paixão que os dois têm e que se revela numa noite de risos, suposições e cerejas.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

DIOGO E RAFAELA

DIOGO E RAFAELA

Dúvidas, meu irmão, não há jeito. A única maneira é se apropriar delas. Aprender a conviver. Sabe a morte? Pois então. É igualzinho. Ninguém gosta muito da idéia, mas sabemos que um dia vai acontecer. Certo como dois e dois são quatro. E se apropriando das dúvidas, você sempre pode evoluir para as técnicas de como lidar com elas. Duas camisetas iguais. Uma azul e uma verde. Fecha os olhos, embaralha, embaralha, pega uma, solta a outra. Abre os olhos. Pronto: leve aquela que ficou na sua mão. Mas tem que definir isso no começo ou corre o risco de se perguntar: levo a da mão ou a do balcão? Pode também perguntar qual o vendedor prefere. Mas é preciso confiar no que ele vai dizer! Se questionar por um segundo, já foi. Convidar aquele amigo “super seguro” também pode ser uma ótima idéia. Mas que fique bem entendido que confia nos critérios dele. Quando for comprar para presentear e surgir a pergunta clichê: será que ela vai gostar?, assuma de uma vez que isso será problema dela a partir do momento que lhe oferecer o pacote. Trocas são feitas todos os dias. Menos aos sábados. É a coisa mais comum no comércio. E sempre vai restar o nobre da intenção. Sim, aquilo mesmo com o qual dizem que o inferno está cheio! A moça parece, de fato, muito resoluta ao falar isso com Diogo quando ele adoece ante o caminho a seguir. E mesmo que ele não possa perceber o quanto isso custa a ela, resiste. São amigos numa amizade que tem cor e tem cheiro. Dizem: somos amigos coloridos. E mesmo que ele não possa preencher todas as frestas que ela percebe, ela gosta quando desafia seu olhar. Aceita ou nega seu desejo. Como quando dormiram juntos. Um desejo de intimidade cheio de estranhamentos e dúvidas. Ela bem sabe que não pularia no seu colo se ele gritasse que a ama. Sente mesmo quase uma dor por isso. Ele desnorteia quando é ela quem faz um chamego ou lhe estala um beijo. Quando o acompanha nos caminhos de passos e paradas. Ele admira sua impulsão e pergunta-se de onde vem. Rafaela diz que é da fome. E repete Adélia: “Não quero faca nem queijo: quero a fome”. Sua amiga é um arco-íris e ele gosta de olhá-la. De vivê-la. E mesmo contra toda a evidência e previsibilidade das coisas, sabe profundamente da não existência de garantias. Mas quer o jugo. Se perder e se achar através dos olhos dela. E mesmo que essa revolução sucateie seu amor sabe que a relação entre as pessoas deve ser feita de trocas. Mesmo que componham uma relação de poder. O poder sempre pode trocar de mãos. Para evitar equívocos, assumem que sua convivência está submetida aos ventos e à poesia. É um jogo, afinal. Rafaela e ele vão construindo uma tragicomédia autobiográfica. Riso e choro. Um jogo de exibição e da ocultação. De beiras. Eles bem sabem que em volta do grande buraco que é a vida, tudo é beira. E deslizam nessa superfície, no jogo com as palavras. O abismo sempre como pano de fundo. É a forma que descobriram para andar ao contrário. Pairar nas dúvidas que compõem o avesso das coisas e desnudar seus meandros. No mais, café com pão nas padarias da cidade e tudo que resvala e rescende. Não querem mais.

quinta-feira, 9 de junho de 2011


ilustração: Marcelo Oliveira

O OLHAR DE ISABEL

Isabel olha as coisas à sua volta. De dentro do barco, observa a imagem do horizonte que se debruça sobre o seu olhar. Olha do verbo fitar com os olhos. Mira, encara, contempla, sonda. O dicionário diz, e não erra, que olhar é também “tomar em consideração”, ocupar-se de alguma coisa. É exatamente isso que ela faz a cada encontro com o que paira. Tanto se ocupa que se perde. É que Isabel mergulha naquilo que olha. Vai às profundezas. Emerge e lembra do olhar de peixe morto, sem expressão qualquer ou o olhar de vaca laçada com todo o susto dentro. Tudo aquilo que ela olha em profundidade, ela guarda. Seja um ponto estratégico, uma criança, ovelhas. Ela guarda. Conserva. Não revela nem oculta. Gosta de guardar. E acha que até calar-se é guardar o silêncio. Elocubra sob o olhar da poesia e sobre o que ela guarda em seu olhar para o mundo. Para as coisas. E vela e é por elas. Segue guardando o horizonte que gira ante o balanço das águas. Se deixa estar no balanço para conectar-se ao que não é estável. Ao que flutua. Lembra de Zac balançando a rede para ela. Lembra do desejo do vôo e do peso da gravidade prendendo seu corpo ao chão. Prendendo a rede ao chão. Deixou-se balançar nessa interface que não é real e não é sonho. Pensa que o nome disso é ilusão voluntária. E que quando uma ilusão voluntária coincide com a ilusão voluntária de outra pessoa, passa a ser sonho. “Sonho que fatalmente viraria pesadelo”. Então não é a gravidade que prende coisas e pessoas ao chão. É o medo. Tenta organizar a sua memória. Lembrar das ações de Zac em ordem alfabética. Das ações onde ele aparece apenas e tão somente como resultado delas. É por isso que Isabel sorve toda a ausência que sente. Deixa-se estar nela. Aconchega-se em seus braços. Sabe que ele vai contentar-se com cartões postais e ela mesma deseja que seja assim. Só uma sobreposição de imagens. Ela sabe da mala pronta e todos os dias a vê no canto do quarto. Está ali como lembrança de que sempre poderá viajar e conhecer lugares novos. Pessoas novas. Sabe que entre o descuido e a premeditação, tem o desejo. Se o aparente erotismo de Zac mancha o branco da sua camiseta ela aproveita e desfila. Isabel é mulher de tentativa e erro. Mulher que aprende fazendo e vai rasgando acasos e estruturas. Até as mais flexíveis. Diz que o que está estruturado serve de apoio para o vôo. Afinal, tudo não passa de um complexo de relações entre o que constitui o indivíduo e o que está ao redor dele. Nas relações que circundam esse processo. No dinamismo. No mais tudo que pode haver entre eles tem só e só um significado potencial. O ofício de Isabel é ser ela mesma. Usar a máscara número 1. Por isso segue sustentando-se naquilo que vê. Naquilo que cria. Porque isso gera condições de suportar todo o limitado que ela reconhece. Por isso brinca. Por isso ama. Afinal, se pegar o telefone e discar o número dele, o que lhe restará? Escutar a surpresa? O susto? Isabel é mulher de ação e sabe que não quer nada disso. Nada. Ela não é cachorra. É sonsa. Tão sonsa que não avisa o momento da mordida. Morde apenas. É da sua natureza e ela não pode e nem quer evitar. Isso tudo parece perfeitamente razoável entre as garfadas que dá e o colorido que resta no branco do prato.


quinta-feira, 2 de junho de 2011

ilustração: Fábio Abreu

MARIA TEREZA

Ela se espanta e não ao abrir a porta do 102. Pede, entre delicadeza e ordem, que os pés sejam limpos no capacho antigo. A limpeza do apartamento é feita uma vez por semana e é preciso conservar limpo. Conservar o que se quer guardar. A limpeza. O conforto do que se tem. Recebe as pessoas na sala de alguns móveis. Tudo ali parece ter uma história. O antigo do lustre aponta que há possibilidade de luz. As janelas semi-serradas denotam um conforto que vem do esconder o externo. Meu lar é meu castelo. Maria Tereza é rainha em vida. Não sei de onde sinto a intimidade. Algo que me convida e incita a estar ali. Ouvir cada uma das histórias que ela tem para contar e me deixar contagiar por um ânimo que profundamente desejo. Ter perto de 80 anos e viver um vigor que sinto de apenas olhá-la. Penso na história de seu nome. Todas as letras fincadas no dia do nascimento. O signo. O ascendente. Tudo sobre a vida que paira na sala de alguns móveis e tanta história. Há algo em mim que se desabilita. Quem sou frente à mulher de nome, idade e signo? Leão. Ela diz que é leonina e procura um amor para restar nos dias. Que não importa o gênio que tenha. Quer sua companhia e há de domá-lo. Queria dar o homem para ela. Criá-lo em minha imaginação, cheio de amor e desejo de amar, e inscrevê-lo repentinamente na vida de Maria Tereza. Na vida repleta desse desejo”. Caminha a mostrar o imóvel. As marcas de si nas fotos de família. A mãe com a qual ela parece. “Sou muito parecida com mamãe. Eu, que tudo perscruto com os olhos e com o desejo, vejo em cada coisa a mulher. Em cada mínimo canto. Esquadrinho uma idéia da fome e da vontade dela e do que pode haver depois da porta do refrigerador. O desejo do café com bolo de laranja é meu ou dela? Como me serviria um copo de água se eu pedisse? Como afagaria meus cabelos se eu deitasse a cabeça em seu colo? Afagaria? O tempo espreme a todos dentro da sala e ela não quer que ninguém se vá. Talvez trocasse todo o seu desejo por continuar a nos contar uma história enredada na outra. Uma história só. Uma colcha de retalhos estendida sobre a cama. Talvez quiséssemos todos restar ali a ouvir as histórias coladas umas nas outras, histórias cheias de ar a fazer respirar todos nós. Maria Tereza pega o caderninho pequeno de espiral. Que guarda ali? Anota nossos nomes e pede os sobrenomes. Escreve nossos nomes numa das folhas com a doçura e firmeza da sua letra, e o joga sobre o sofá. Restaremos ali. Com esse papel na vida dela. De um momento. Da rua, o canto do olho rabisca para mim sua figura na janela. Qualquer coisa que se estreita entre o que pode e o que não pode ser, e o que será. Tenho saudade de algo que já não é, e sem ter sido, apenas é. É e paira. Ela está lá. Eu estou aqui. E mesmo que Maria Tereza pudesse propiciar meus sonhos e eu os dela, ainda assim seríamos tão outras e tão as mesmas. O canto do olho desolha e sigo sem olhar para trás. Acarinho a curiosidade de tornar os olhos para ela ou para a janela sem ela. Já a tenho dentro junto de tantas outras ideias. Abraço e me aninho em seu colo, Terê.



sexta-feira, 27 de maio de 2011

O VOO DE LÍDIA



                                                          ilustração: Marcelo Oliveira


O VOO DE LÍDIA

Lídia, que acaba de despachar suas malas na esteira da companhia aérea, pensa em Pedro e caminha para o café. Ela administra esse mundo que é tão seu. Nenhuma preocupação que risque seu rosto com linhas que não chegam antes do tempo certo. Sabe que há tempo para tudo. Até para as rugas. Tem o olhar de quem conhece essa afirmação e, nele, a paciência para tudo que ocorre a seu tempo.

Foi assim quando deixou de restar perfumada no balanço da rede. Levantou e saiu. Tem Pedro tão dentro dela. Talvez só ele saiba que ela, quando gorjeia, fica nua entre o choro e o riso. Talvez. E talvez, por sentir-se tão inteiramente nua, é que ela finge. Ela se esconde em tudo que veste. Até nas máscaras. Nas tantas que é. Quando canta e sua voz escorre, se vê deslizar por ladeiras, girar em saias e encontrar as águas. Caminhar rios inteiros e desaguar no mar. Sente na boca o sal se misturar ao doce. Lídia é salobra e tem correntes frias e quentes. Tem micro-organismos. Por isso sorri a vida que há nela.

Queria ver Pedro deslizar na água e terra que ela é. Ilha. Deslizar no lodo que há por baixo. Tão perto, observa os receios dele. Os receios que a sustentam e permitem que ela possa mentir tão assustadoramente. Às vezes, escuta a culpa espiá-la pela janela. Lídia não sente culpa nenhuma. Apenas desvela sua presença. Sua ronda. Um dia a culpa saiu da janela e bateu à sua porta. Lídia destrancou as chaves e a convidou para entrar. Ofereceu o aconchego da poltrona e apoio para os pés. Ofereceu café. Tornaram-se grandes amigas. Entende? Já Pedro vê e não vê. Nodoa. Ora atenta, ora pensa que esquece. Lídia sabe que certas coisas não se pode esquecer. Deixa-o olhar para ela e estar suspenso. Chama para sair. Ri. Chora. Mente. Sabe que enquanto houver sol ela sempre poderá deitar seu corpo na areia quente. Dourar e aquecer. Sente o sol metabolizar suas enzimas e turvar seu pensamento. Quanto à culpa, depois de tanto tempo de confidências no sofá regadas a café, deu um basta. A verdade é que está muito bem, obrigada. Se Pedro quer pairar nessa névoa absurda, que assim seja.

Ela prefere o sol. A claridade do sol. Sente seus raios atravessarem o escuro dos óculos e iluminarem as letras que moram nela. As letras de seu nome. Todas juntas demarcam o que disse a astróloga diante das cartas tantas espalhadas pela mesa: “Moça, você é uma contradição! Joga com os opostos em todas as instâncias da sua vida. E o melhor, você não acha isso ruim”. Lídia sorri o que dentro já sabe, mas deixa acontecer o efeito de uma afirmação externa que vem supercolar ao que já estava dentro. Adesivar-se à pele. Ela gosta do jogo.

Nasceu para estar diante da malemolência que permeia o sim e o não. Talvez não queira mesmo saber de nada definitivo. Diz que definitiva é a morte e enquanto ela viver quer o provisório, o que pode mudar sem hora marcada. O que pode assustar. Talvez por isso ela caminhe certa e incerta pelo saguão. Talvez por isso desvie e atravesse a porta que abre ao seu pisar para fumar um último cigarro antes do embarque. Talvez por isso ela acene para o táxi que passa vazio e entre sem dizer palavra. Sabe que precisa abrir espaço para as coisas. Abrir os pulmões para o ar e a fumaça. Dar sorte para o azar.











quinta-feira, 19 de maio de 2011

ilustração: Marcelo Oliveira
O CANTAR DE ISAURA

Isaura está recostada na poltrona de tecido amarelado. Não sabe se é o esmaecido da cor ou se é a própria aura dela que amarelece ainda mais a cena. Ela se apercebe do palco onde atua. Atua? Olha os dedos que tamborilam no colo, nos braços da poltrona. Como se por dentro houvesse uma angústia a devastá-la. Pergunta-se o que poderia fazer para subtrair a dor que vê e sente e que paira sobre a sala, a cozinha ou o quarto. Há uma densidade indevassável que Isaura carrega com ela. Está nos olhos que espiam sua própria vida com rigidez. Uma espécie de dor que ela acalenta e arrasta. Compreende o quanto está misturada com o que vê e silencia. Queria plantar nela própria um desejo que a arrancasse desse lugar. Ver qual sintonia busca enquanto gira o dial da vida. Haverá algo capaz de calar o que fala em mim? Desde pequenina pergunta-se. Nem sabe como cultivou tantas questões e quando desistiu de responder. Desistiu? Há algo que a acalenta enquanto bóia nas dúvidas. Mas ela não vê. O estômago dói. A cabeça e as costas bem na altura da quarta vértebra. Outras vezes o braço, os dedos, as pernas. Diz querer o cheiro do encontro. A temperatura. O gosto que certas coisas têm. Até a dor. “Eu quero ser estreitada na parede que separa o sim do não”. Não ter tempo para a dúvida. Isaura quer, de vez, se situar diante do que fala e do que silencia. Do olhar que se dirige para ela e finca. “Quero que finque morada em mim. Sinta que sou áspera, sou dura, tenho espinhos e adoro rir”. Da poltrona onde está, olha o quadro na parede. Um pedaço de terra e água que ela conhece tão bem. Um lugar que é a soma de infinitas direções trazidas pelos ventos. Assim como a paixão que sentiu num dia tão distante. Pensa em tudo que andou e nos passos que não podem voltar. Pensa no chão esvaído. Nela mesma tão escorrida. Se pudesse levantar da poltrona deixaria para Jonas a exata medida de tudo que amou. Deixaria o disco que ela tanto gosta e todo o resto. Talvez, se ela fosse atriz de um certo filme, diria: “Jonas foi meu erro. Meu primeiro e grande erro”. Sabe que depois dele, todos os outros parecem menores. Justificam-se, ela diz. No entardecer da vida, o que sossobra é a brisa e tudo que vem com ela. A brisa e as canções. E por mais que Isaura tente compreender, quando da janela olha o mar e as ondas que rebentam em sua memória e lá mais na frente, é inevitável a constatação: não há como saber de todas as coisas. Não há como prever os acertos ou evitar os erros. Há apenas as coisas que tamborilam dentro de nós e criam fagulhas. Ela sabe que não pode lamentar o que não incendeia. Nem todas as coisas geram combustão. Mas pode evitar o medo do incêndio. Bem sabe, fechando ou abrindo os olhos, o que crepita. A brisa, ao seu tempo, mostra isso para Isaura e, matreira, faz seu olho piscar com uma fagulha qualquer que vem de um lugar qualquer. É talvez esse impulso que a faz deixar o amarelecido da poltrona, ir até a penteadeira e roçar de leve a cor do batom em seus lábios. Olha no espelho o rosto de alguma vida e os sonhos carmim que sempre encheram seu viver de graça. Cantarola uma música qualquer das tantas que habitam seu imaginário. Haja o que houver, canções colocam coisas no lugar.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

NASCE MARIANA

A moça pergunta-se o que é Terra Natal. Escuta dizerem que tal qual o amor, é coisa única. Um só amor por vez. Uma só terra natal para se ter. Dizem. Mas Mariana, que só conhece o mundo e as coisas “de ouvir falar”, não pensa assim. Pois sente-se capaz de abrigar em si muito amor. Amor simultâneo por coisas, cidades e pessoas. Por isso ama Edgar e Rafael. O vestido com estampa de oncinha e os chinelos. Por isso navega nas ruas da cidade e diz: eu nasci aqui. A muitos lugares ela sente pertencer. Lembra-se das aulas do primário, dos símbolos de  pertence e não pertence, no agora Ensino Fundamental. Certas mudanças ela não administra bem. Pensa que fundamental é mesmo o amor. E isso não muda. Escuta a frase que vem de alguém e também outras. Ela não cansa de amar as mudanças. Todas elas. Até do tempo. Talvez porque assim vislumbre possibilidades de recriar-se e sair da mesmice a que todos estão destinados. Estamos todos destinados à mesmice! , diz apocalíptica. De todas as formas possíveis para uma mudança, ela prefere aquelas que não tecem motivos para acontecer. Sem razão ou razões para explicar ou justificar. Diz: gosto daquelas que se interpõem feito tiro – entre o disparo e o alvo. Talvez porque isso a pegue de súbito e ela se renda à surpresa. Ela adora surpresas que a surpreendam, que a suspendam. Um dia caminhava passos sonoros numa calçada da cidade. Vaporosa, balançava o vestido em seu rebolar e tirava e punha no chão a sandália espartana. As tiras amarrando carinhosamente o duro do tornozelo. Nem notou que logo à frente havia um duto de ventilação no desenho da calçada. Quando a lufada de ar se instalou debaixo do vestido, aparou-o com as mãos. O instante em que segurou a saia foi solapado pelo desejo de se largar ali. Brincar com o vento que queria brincar com ela. E debruçou-se sobre o evento. Deixou-se atravessar pela idéia, pela brincadeira. Ali mesmo, no meio da calçada, entre transeuntes e passantes, foi Marilyn Monroe. E porque era a sua cidade, sentiu deflagrar os rastilhos daquela experiência. Admite que qualquer rastilho pode ser mais que isso. E quer mais. Porque Mariana gosta mesmo de incendiar. De experimentar desassossegos, cheiros inusitados, rajadas de vento. Isso é estar no conflito. Como estar no sofá de uma sala de espera, somente no aguardo da sua vez de entrar. Dar ou receber o diagnóstico. Assinar ou não o contrato e assumir as prestações que a farão refém ou algoz. Os papéis todos da gaveta espalhados em cima da mesa. Um foco de luz roendo um pedaço do seu chão. Ela ama cada estrondo. Cada parede que desmorona. Disse para sua amiga que coragem não é ausência de medo – é o medo mais o desejo de fazer determinada coisa, de superar aquele medo. De novo a voz: Há desejo dos dois lados. Sim. Há sim. Deve ser por isso que toma o avião carregando apenas sua bolsa. Sabe que quando se tem muito a perder não há espaço para pensar. Esse é o caso e ela vai perder cada uma das suas coisas. E vai nascer num outro lugar repleto de coisas outras que vai amar e odiar. Uma outra terra natal.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

A ÓTICA DE ADRIANA


Adriana ultimamente tem pensado em rimas. Em combinar e (des) combinar. E vai dando asas para o seu olhar. Um anel feito de uma raiz qualquer que boiava no rio. Um caranguejo cozido na cerveja. Degustar. Muitas braçadas no alastrado do mar. As ondas do mar. Um chocolate. Um livro cheio de aventuras de se perder e se achar. Milhares de palavras. Um enorme ponto de exclamação ou os raios do sol. Dourar e aquecer. Iluminar. Mãos debaixo do cabelo. Um abraço de enrolar os braços. De se perder e se achar. Um poema. Uma música para dançar e se encantar. Uma rede para balançar. Um balanço para ninar. Uma comidinha feita em casa. Um copo de água que mate a sede. Um beijo cheio de sede. A mão quando for preciso. Também o colo. A mão para caminhar. Navegar. Ver os peixes no fundo do mar. Temperos frescos para cozinhar. A margens das coisas. Dunas de uma praia. Todas as praias. Barcos. Velas e claustros. Todas as florestas. Os rinocerontes. As sombras que guardam. Fontes para se banhar. As noites e as manhãs. Estórias e histórias. Flores de todas as cores. Pétalas. Vôos de pássaros. Cantos e silêncio de pássaros. O barulho do mar. Uma concha para guardar. Cócegas para brincar. Uma letra de música que derrame lágrimas. Esboce sorrisos. Um esboço de casa para guardar. Manga. Fruta do conde e um pé de jatobá. Uma palavra sussurrada. Um hino para cantar. Faca boa de cortar. Um violão para acompanhar. Roda de samba, de capoeira e berimbau bom de escutar. Cheiro e gosto de pimenta. Lugar de se esconder e se achar. Uma criança. Um cavalo solto no pasto. Rebanhos para apreciar. Superfícies para caminhar. Caminhos de se perder e se achar. Coisas para se desvencilhar. O que se quer. O que não. Uma quadrilha para bailar. Uma casa para voltar. Um beijo de arrasar. Pecados pequenininhos. Um balão colorido subindo para o céu. Contas para pagar. Um terreiro para o olhar. Dúvidas para acalentar. Alguma dor para sentir. Fome. Ânsia de paz e de guerra. O sorriso de um menino. Uma corda para amarrar. Um nó para soltar. Uma pedra para atirar. Uma mentira para ocultar. Segredos para descobrir. Paisagens para desvendar. Quintal. Uma cadeira para recostar. Muitas janelas por onde olhar. Janelas para o vento entrar. Janelas para fechar. Cadeira de balançar. Uma máquina para (des) calcular. Panela boa para grelhar. Um samba de se acabar. Um jardim para plantar. Alguém de quem cuidar. Um vício ruim de tirar. Uma raiva de espumar. Espuma para se banhar. Uma pedra para lascar. Muita lenha para queimar. Fogueiras para se engraçar. Um pau de barraca para chutar. Uma cabana para descansar. Toda a vida que há no mar. Um sorriso para fazer chorar. As rugas de um olhar. Tempo para escutar. Um pedaço de pano para enxugar. Alguma monotonia para cansar. Tinta para desenhar e mudar. Portas para destrancar. O que nem sempre se pode escutar. E a doce surpresa de morar no seu olhar. Se perder e se achar. É isso, mais todas as entrelinhas, que Adriana diz no ouvido de Vítor. Ele sorri sem ao certo escutar. Das coisas que ele tem para dar, ela só pega o que esvai na fumaça das horas e ele nem vê. E nem pode alcançar. O que pode queimar. O que não dá para segurar e nem teria cabimento ocultar.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O DESCONFIAR DE ANA

Ana, apesar de não ser mineira, é moça muito desconfiada. Sobe os degraus da escada e desconfia estar atrasada. Em meio à correria não sabe se registrou corretamente o horário. Teria marcado três ou três e meia? De qualquer modo, segue seu passo. Caminha. Em algumas horas saberá. Desconfia que não trancou a porta ao sair e que, como se isso não bastasse, esqueceu de colocar água na vasilha de Peni. Peni é o apelido de sua cachorrinha, Penicilina. Escolheu esse nome porque a substância é curativa e Ana precisava curar-se. De quê? Ela desconfia que de “mal de amor”. Natural então essa atitude. As penicilinas constituem uma das mais importantes classes de antibióticos e são amplamente utilizadas no tratamento clínico de infecções causadas por diversas bactérias. E se Dr. Alexander Fleming, em 1928, tivesse conhecido Ana, certamente estudaria a moça em laboratório. Exatamente como fez com variantes de estafilococos, observando que a cultura de um tipo de fungo, Penicillium notatum, produzia uma substância que inibia o crescimento bacteriano. Ana desconfiou que descoberta de tamanha monta era uma razão perfeita para uma homenagem póstuma. Mais de 80 anos depois. E que homenagem melhor do que nomear sua cachorrinha? Afinal, na ocasião, desconfiou severamente que Peni havia de curar seus males. Pergunta-se se o amor pode ser considerado uma bactéria. Desconfia que sim, embora, com o decorrer do tempo, tenha percebido que isso só não seria suficiente. Sabe muito bem que certas dores de amor, assim como as bactérias, são muito resistentes. Mas tudo bem. Como ficou comprovado com a penicilina, soube que seriam necessárias alterações na estrutura química inicial diante da emergência de bactérias resistentes, assim como a necessidade de ampliação do seu espectro de ação antibacteriano. Fácil. Assim é a vida, coisas resistem e coisas capitulam. Como as bactérias. E Ana, que desconfiou de tudo isso, correu atrás de alterações necessárias. Desconfia que está tendo bons resultados, embora não consiga dormir nos braços da certeza. Pensa o que Dr. Fleming diria disso. Do amor como bactéria serííssima a ser tratada com a sua descoberta. Agora conhecida como a boa e velha penicilina. De qualquer modo, olhando desse ponto vista, digamos, científico, ela desconfia que tudo é como alguém lhe falou um dia: uma questão de sobrevivência. E assim é se lhe parece, diria Pirandello. Além do mais, ela desconfia também que alguém lhe disse que as “as coisas não são o que são, mas o que representam para nós”. Então desconfia que tudo ficará bem. Se não pode ter certeza das coisas todas que a rodeiam, desconfia que Peni a ama profundamente. Desconfia disso, sobretudo, pelo seu olhar e sabedoria cã. Ao lhe interpelarem “Será o Benedito que você não consegue ter certeza de nada?” ela responde desconfiando estar certa: Desconfiar é melhor que saber. Afinal, a realidade tem limites, a imaginação não. Realmente, desconfia de maneira muito séria, que lá em 1928, Dr. Fleming não tinha certeza não da magnitude de sua descoberta. Talvez tenha desconfiado apenas. Desconfiado tão assustadoramente, que chegou a ter certeza da desconfiança. Então pisou fundo e foi. Como Ana.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

IVONE, O AMOR E A CIDADE

Ivone caminha pela cidade. Dentro dela e do passo ritmado debaixo do sol, descompassos. Um bate estacas crava fundações nalgum lugar. Ivone ama. Carros vão e vêm. Param, disparam. Ivone pensa em César. Uma mão esmola atenção. Ivone esmola o amor de César. “Nunca vou cansar desse oferecimento?”. Por mais que a pressa se deite sobre o dia Ivone não escorre. Caminha por ele e para as coisas que se enfileiram. Pensa em César e diz para ela mesma as palavras. O que diria para ele caso pudesse ouvir: “Você poderia me confortar com maçãs ou algo assim? Uma massagem que me deixasse, inteiramente, relaxada? Eu espero realmente que sim. Meu corpo não gosta de grosserias e só assim eu poderia te receber. Peço, sem nenhuma culpa que me encha de mimos. Poderia, nesse dia, fazer isso? Esquecer do mundo e ficar comigo? Nesse dia quero que viva e me faça viver. Tire meu ar para eu poder respirar. Já pensamos um no outro o resto do tempo”. O farol abre. Ivone entre as pessoas atravessa. Está caminhando para o que quer. Quer? Está dando asas a um desejo qualquer. Desvia do homem que cambaleia. Da vida que cambaleia nas primeiras horas da manhã. Os desejos movem Ivone e ela deixa. Saboreia um café antes dos degraus da escada. Os degraus do mármore pisados desde 1940. Mais de 70 anos de sobe e desce desenharam a lombada invertida nos degraus. Um aprofundamento literal causado pelo uso, pelo desgaste. A cidade pulsa e se admira. A cidade vive. Sorri e cora. A cidade chora. Ivone ama. Continua seu recitar silencioso para César embora esteja cansada do desgaste que isso gera. “Na minha hora, me percorre com demora. Faz pipoca doce para mim”. Um casal namora na praça. Um homem discute ao celular. Um corretor tenta convencer seu cliente. A mãe puxa a mão do filho. A menina carrega o rosa na mochila e o lilás no olhar. Um carro freia. Um susto que dá e passa. Ivone anda e pensa em César. Ivone ama. E por mais que ele lhe pareça tão adestrado, sabe da pulsação batendo forte. Batendo igual. “Eu te daria um pedacinho da minha vida e pecados. Pecados bem pequenininhos. Mas ando um pouco cansada do seu jogo. Eu deixaria você mergulhar no que pode haver no fundo dos meus olhos. O que pode haver?”. Um cachorro dorme alheio. Um homem dorme alheio. Nem Ivone nem César estão alheios ao que sentem. Nem Ivone nem César capitulam. Reais, são tão e simplesmente tocantes. Ócio e Vício. Ivone, debaixo do sol para quem não cansa de se abrir, quer naufragar. Capitular. A cidade almoça. O ar tem cheiro de pão com lingüiça e o cachorro está na porta. Os carros passam. Do ônibus saltam chegadas e embarcam partidas. César não telefona. O carro freia, Ivone passa e o moço pisca. Pisca para Ivone. Ela sorri. Ele pede para ela esperar. Os carros passam, Ivone sorve a água de coco e espera. O moço do carro chega. Ivone sorri. Ele também toma água de coco. Entre o que pode haver e o que há, Ivone desempenha. Se a pipoca doce não sai, fazer o quê? O que quer que possa haver no fundo dos seus olhos, tem agora a sombra do olhar do moço. Moço bonito e cheio de histórias. Os carros passam e fazer o quê? A fila anda.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

DOCE DOMINGO

Açúcar, cacau, extrato de malte, sal, soro de leite e leite desnatado em pó, mais vitaminas C, B3, B2, B6, A e D, estabilizante, lecitina de soja e aromatizantes; tudo estava no pote de 200 gr de achocolatado em pó e agora está em Márcia. Sabe que não engordará nenhum grama por essa desventura de um domingo chuvoso. Amanhã caminhará durante duas horas inteiras e todas as 800 calorias escorrerão pelos dedinhos miúdos de seus pés. Tem o gosto ainda na boca e os dentes com cor de chocolate. Olha o pote que resta vazio sobre o sofá. Não viu nada no fundo do pote além do vazio dele. Paredes de plástico e o ar dentro de um pote vazio. Um vazio que também está dentro dela e que ela tenta suprimir se afogando em potes de achocolatado. Depois aparecem os contornos dentro dela. Dores localizadas e esparsas. De quando em quando arrota silenciosamente. Leva as mãos à boca e sente nos olhos um embaraço. O que é que havia antes? Sente uma espécie de culpa. Pensa nas pesquisas que mostram que chocolate ajuda a combater o estresse e a depressão, além de fazer bem a pacientes com doenças do fígado. Já o exagero cometido por Márcia só vai saturá-la de gordura saturada (Poderia ser pior?). Não liga. Sabe que, no seu caso, vai tudo para o pé. Concentra-se no lado bom: flavonóides, potentes antioxidantes que ajudam a manter o coração saudável, a boa circulação sanguínea e que limitam a ação do velho e conhecido "colesterol ruim". Aliás, aproveita o domingo achocolatado para um banho de banheira. Prepara o espumante da água com o sal rosado que está sobre a pia. Coloca no aparelho de som portátil um cd de blues e relaxa na água. Pensa nas pilhas de papel no escritório. Pensa no panda de pelúcia que seu filho quer no aniversário. Ele disse que pandas comem bambus e são tão fofos. Urso-gato em chinês. Escalam árvores e são herbívoros. Comem somente de 20 a 30 espécies diferentes de bambu quando a China tem perto de 300. Esse é um dos motivos da extinção. Mas Márcia não é selvagem e não corre esse risco, embora prefira certas marcas de achocolatado diante de tantas enfileiradas nas prateleiras. Além disso, se o panda é o orgulho dos chineses, ela é o orgulho de Heitor. Pensa se ele mora no vazio do pote agora sobre o sofá. Se ele está cheio de ar, não há de restar espaço para o que é dela. Banhada de sais e chocolate cola um adesivo verde no vidro da janela e sente a luz que entra incidir verde sobre o pote no sofá. Sente os elétrons vibrando ali. A resistência dos átomos do material pástico prendendo esses elétrons. É apenas um pote de achocolatado vazio ou cheio de ar. Plástico injetado. Uma espécie de subtração de cor espelha tudo isso para Márcia, que sorri as vicissitudes de um domingo achocolatado.

domingo, 27 de março de 2011

SALA DE JANTAR

Maria deita o olhar científico e atento para Adelaide e todos que estão na sala. É capaz de se misturar com os pensamentos e de lá retirar sumo. É um jogo perigoso. Apreende o que em vão tenta esconder-se e esparrama-se pelo chão da sala. Uma espécie de sentimento que lhe impinge inadvertida sublimidade. Quer se desapropriar dos discursos, daquilo que fala por ela e não é ela. Olha a cachorrinha e lembra do gosto de correr pela praia e fugir das ondas. Observa Raul. Nada do que diz persiste ante o frenético balançar do rabo roçando-lhe as pernas. Quero ser salva pelo apelo! Me redimir. Então ele diz pra ela não dizer o que escreve. O que nos atravessa não deve ser dito nem escrito. Ela diz para ele que nada resiste ao que se impõe e aniquila, e sorri o ridículo da sua circunstância. Ela ama. O olhar da cachorrinha impede e impele. Para evitar equívocos, toma o cuidado de avisar que é apenas e tão somente a circunstância daquele abanar que a define.

Odair olha o mundo através e por detrás dos óculos escuros. Sabe que eles escondem os olhos de quem olha e despertam em quem é olhado “um não saber como se é olhado”. Ele olha as outras pessoas de um lugar chamado palco – que é uma espécie de tablado mais alto onde uns ficam distintos dos outros – e as coisas são vistas dessa perspectiva. Desse lugar olha para Gisele. Sabe que não fosse a inconstância das coisas nem teria percebido tudo que se transforma em areia na pá do moinho que roda ao vento. Ele desacredita. Sente que nada do que faz é capaz de gerar energia. Sente o peso do vácuo. O mormaço que arde na pele. Ainda há de flutuar ante o apelo do vento. Suspender. Ela sorri a vontade de ir junto. Mandar tudo para o inferno. E pensa onde mesmo é o inferno. Onde?

Maria torna seu olhar doce sobre a mesa. Doces e salgados para degustar. Ela gosta de degustar. Sentir os sabores e o trabalho das papilas. A cachorrinha ainda abana o rabo. Quer degustar. Maria compreende o que pesa em Raul e quer subtraí-lo desse esforço. Mas ele não cede. Quer a cruz. Odair, por detrás dos óculos diz: Você pensa que sabe das coisas. Mas não duraria um só segundo na vida que fervilha e eu seguro nas mãos. Isso eu sei e garanto a você.

Maria olha Adelaide e sente uma lufada de desespero. Mas nem que todo o impetuoso calor da menopausa fosse jogado sobre o esverdeado dos olhos dela, nem assim Adelaide deixaria de existir e de mostrar que a vida é um jogo de absoluto risco. Maria tem medo e sabe que não lhe resta alternativa senão tatear o que sobra. O que ela tem, afinal. Tem?

Odair olha Adelaide. Olha Maria. Nem sabe o que existe e atravessa e divide sua vontade. Sente o peso da impotência e toda a dor que um homem pode sentir. Nada do que faça o livrará do peso de fazer. Nada que não faça o livrará do peso de não decidir. Sorri a paciência do encalço. Administra o jugo. É homem, afinal. Muda algo saber isso? Pensa o que distingue um homem. O que delimita o que lhe pertence e o que não. Sabe que não pode conter o vento, mas tenta. Nenhuma mulher pertence. Nenhuma mulher é livre. Nenhum homem vive sem a dor. Também as mulheres. Sabe apenas que a caixa ao seu lado, enquanto houver, é sua. E de lá extrai o segundo seguinte.



terça-feira, 22 de março de 2011

SOBRE DUNAS

Maria Alice junta um punhado de areia entre as mãos e deixa cair devagarzinho. Pensa em grãos de areia e em desertos. Na duna encantada nos recônditos de Jericoacoara, que, diferente das outras, nunca se move. Dizem que há um navio dentro dela. Um navio que encalhou e então a duna se formou sobre ele. Que durante a noite, entre feixes de luz, seres encantados festejam e vivenciam esse acaso. Então Maria Alice pensa em seres que vivem na areia. Calangos, répteis, insetos, minúsculas e invisíveis bactérias e homens. De todas as raças. De onde ela agora está, vê a multidão que caminha para subir a duna do Por do Sol. Há muitos anos ela estava em outro lugar e lentamente foi caminhando. Ouve alguém dizer que o mar está comendo a duna, mas o que Maria Alice observa é o vento e compreende o amor da duna. Sabe que ela é quem está se dando ao mar. Ele a quer e ela quer ser dele. Então o vento venta nela e devagarzinho ela vai. Que nem o punhado de grãos que escorre de suas mãos. A moça pensa no que lhe escapa. Naquilo que não é desejo dela e nem de ninguém. É simplesmente a ação do vento sobre ela. Ação que espalha seus grãos e tudo que pode haver de solúvel. Maria Alice é solúvel em água. Dilui-se e recompõe-se pelas mãos dos mistérios que a fazem ventar. É por isso que ela se espalha enquanto pessoas sobem a duna para ver o sol cair no mar. Lembra do navio dentro da duna que não se move e que por isso serve de referência aos pescadores. Pensa que referência é algo que não se move enquanto o homem vai mudando de lugar e então lembra quando rodopiava de mãos dadas com Josué. O mundo todo girava enquanto um morava no olhar do outro. Amparavam-se. Agora tudo virou essa areia que escorre de suas mãos. Maria Alice é duna que se entrega pouco a pouco ao mar. Vai mudar de lugar e de forma. E ela será ela mesma e será outra. Talvez porque a areia se forme pela erosão das rochas, caiba ao vento e a água a tarefa de sedimentá-la. Dar a ela estrutura e tudo que lhe compõe: sílica, quartzo ou recifes de coral. Até sua textura diz dela e dá pistas sobre a distância que percorreu. Leu certa vez que quanto menor o grão, mais fácil a duna é transportada e de mais longe vem. Maria Alice parece saber que o que quer que forme e mova as dunas é ação sobre elas e não o contrário. Uma ação combinada de fatores que ela chama de desejo e os cientistas de saltação, arrasto e suspensão. Foi desejo, ela diz. Desejo do vento. Mas sabe também que o tamanho e a forma dependem da praia. Se a praia tem pouca inclinação, mais areia chega à costa e mais dunas são formadas; se a inclinação é acentuada, mais areia é tragada de volta pelo mar, e as dunas são menores. Dunas e Maria Alice são ecossistemas com incontáveis organismos e saberes. De flores de aroma suave a pequenos roedores, cobras, lagartos e até o girassol, que se adaptaram à vida na areia. E protegem-se mutuamente. Talvez por isso certas dunas cantem. Pela vida que vibra nelas. Praias, dunas e vidas se precisam.



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SOBRE QUESTÕES RESPIRATÓRIAS E AMORES INVENTADOS

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