quinta-feira, 20 de agosto de 2009

VANESSA ATALANTA




Crônica publicada no Jornal A Notícia de Joinville em 20 de agosto de 2009.

Ela pensou em bater na porta umas batidas leves. Em colocar um bilhete pelo vão debaixo da porta e ir embora. Pensou em bater umas batidas fortes e esperar abrir. Ver a surpresa estampada, o desconforto por detrás da alegria. Pensou em chegar na hora da chuva. Encharcada. Passou pela Rua Dr. João Colin a caminho do Shopping Cidade das Flores desviando de sombras e sorrisos. Entre uma bicicleta e outra uns sobressaltos; e já são eles sombras. Entrou para dar uma espiada em quem estava por ali. Entre a fumaça que ondula e a que se esvai pelo exaustor, um mundo acontece naquele café pulmão. Muita gente, mas ninguém aqui. Preciso de ar. Depois foi só descer pela Blumenau e olhar de frente o local onde sempre encontrava com ele... Ver que o lugar estava ainda no mesmo lugar. Quantas quintas... “Prometo que vou resolver. De hoje em diante não esperarei mais”. Ele prometeu. Ela escutou.
Noutro dia passeou pela Rua Marechal Deodoro; pegou embalo no vácuo de uma bicicleta. Só ela e o silêncio da frente das casas; porque a vida é sempre nos fundos. Ele talvez pense ou saiba que ela parou ali, bem perto da árvore grande. Deve saber. Mas foi uma bicicleta encostada no muro quem a viu rondar a frente dos jardins. E viu a guia onde os dois sentavam olhando as árvores por baixo, pensando em toda a vida que acontece lá em cima, nas copas. Ela lembrou das conversas que tinham sobre pássaros, borboletas, sobre vôos. Mas agora nenhum som da voz dele... Lembrou quando disse para ele que a borboleta quando rodeia a gente é porque traz uma notícia boa. Como ele não acreditasse ela se pôs a ler os lábios de uma que lá estava para ele. Ele ria. Então ela chorou com a notícia trazida. Ele enxugou o rosto dela.
Ela tem muita saudade do que um dia eles desejaram, da capacidade que tinham de reinventar... Agora ela não sabe mais. Quer mudar de vida, de cidade, de país. Não quer acabar. Quer voar por outros lugares. Quer sentir-se humana, de carne e osso outra vez. Ela vai virar o jogo. Cansou de se camuflar para fugir dos predadores. Vai voar até que todo o medo saia de dentro dela. Vai esperar que ele saiba ouvir as borboletas e sorria outra vez pra ela, mande um bilhete, coloque um anúncio no jornal. Qualquer coisa que seja sinal de contato.
Não vai nada. Sendo mais humana ela vai é juntar todas as suas coisinhas, comprar uma passagem aérea para Portugal e começar tudo outra vez. Tão longe ela encontrará a si mesma e por certo deixará de bobagens como ler lábios de borboletas e pior, interpretar isso. Vai aproveitar o frio e migrar para um lugar mais agradável, mais propício à sua sobrevivência. Flores de urtigas, pequenas lagartas e néctar de flores hão de sustentar Vanessa.

domingo, 9 de agosto de 2009

achado carinhoso de um amigo querido, Rubens da Cunha

O POETA ASSASSINA A MUSA

Há dez dias que Clotilde
- Uma das musas queridas -
Anda aborrecendo o poeta.
Aparece carinhosa,
De repente vira as costas,
Diz várias coisas amargas,
Bate impaciente o pé.
Então o poeta aporrinhado
Joga álcool e ateia fogo
Nas vestes da musa.
A musa descabelada
Sai cantando pela rua.
Súbito o corpo grande se estende no chão.
Diversas musas sobressalentes
Desandam a entoar meus cânticos de dor.
Clotilde ressuscitará no terceiro dia,
Clotilde e o poeta farão as pazes.
Música! Bebidas! Venham todos à função.

Murilo Mendes em "O Visionário" 1930-1933

tem certas coisas que só o Rubens faz por você :))

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

CÓDIGOS

Crônica publicada no Jornal A Notícia de Joinville em 30 de julho de 2009.

Esses dias eu me lembrei de uma brincadeira que a gente fazia lá em casa quando éramos crianças. Minha mãe ensinou pra gente. Chamava-se “Língua do P”, e consistia em separar as sílabas de todas as palavras que você queria dizer e inserir na frente o “P”. Então, se você queria dizer “pega um chocolate pra mim”, dizia: P-vo P-cê P-pe, P-ga, P-um, P-cho, P-co, P-la, P-te, P-praP-mim? Era muito legal falar essa língua e a gente sempre “sacaneava” alguém com isso. E também era uma brincadeira nossa. A gente falava e nem importava se entendessem ou não, era uma brincadeira da minha mãe com a gente. E era muito bom. Depois, com a pré-adolescência, inventamos muitas outras. Tinha uma tão complicada que nem me lembro pra contar agora! Que pena! Mas lembro que escrevia coisas no meu diário com essa língua! E quando eu repassava as coisas que tinha escrito, tinha que eu mesma, ficar decifrando o que tinha escrito! Lembro de outra muito boa: a Língua do Geregsten. Essa consistia em soletrar todas as letras de cada palavra que se queria na frase, utilizando o “geregsten” depois de todas as consoantes, por exemplo, “N-geregsten, P-geregsten; e para as vogais usar a norma: agrafe para A, egrefe para E, igrife para I, ogrofe para O e ugrufe para U. Então, a frase do chocolate ficava assim: VgeregstenOgrofeCgeregstenEgrefe PgeregstenegrefeGgeregstenAgrafe UgrufiMregstem CgeregstenHgeregstemOgrofiCgeregstemOgrofoLgeregstenAgrafeTgeregstemEgrefe PgeregstenRgeregstenAgrafi MgeregstenIgrifiMgeregstem?
Imagina isso leitor! Uma loucura... Mas pensando com os olhos de agora vejo que aquilo era tão bom! Veja, essa língua do “P” dava pra gente uma intimidade muito grande com o ato de separar as sílabas, (rápido, naturalmente, porque não tinha graça falar gaguejando) e ainda enfiar um “P” na frente de todas as sílabas. Essa do Geregsten nos dava uma intimidade enorme com o ato de soletrar! Olha que domínio era cobrado para desempenhar essa fala! Um baita treino pro cérebro, não é? Acho que sim, agora ao menos, eu vejo com esses olhos. E me dá uma alegria imensa lembrar disso tantos anos depois (treinei tanto o cérebro com essas línguas que esqueci de aprender a fazer as contas de quanto tempo isso faz!). Bobagem. Mas acho de fato “um grande barato” essa história, essa cumplicidade que tínhamos. E a minha mãe estava sempre metida na brincadeira e também falava a língua do “Geregsten”. Acho que ela virava criança junto com a gente. Fomos crianças felizes. Ela e nós no mundo do “Geregsten” e do “P”. E também da mímica. Brincadeiras simples que nos uniam em torno do mundo encantado da não-palavra e do ato de comunicar-se de um modo diferente. Pensar que hoje em dia falamos um português tão claro e o ser humano às vezes ainda não se entende... Quem sabe é preciso subverter, não é? Tentar talvez falar uma língua estranha, ou por mímica para fazer valer o que “não sai” no português correto!

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