quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


DA SÉRIE CARTA ENTRE AMIGAS: COISAS QUE NOS ACONTECEM




DA SÉRIE CARTA ENTRE AMIGAS: sobre coisas que nos acontecem 

A outra carta da minha amiga veio, segundo ela, com um componente hormonal (TPM e abstinência sexual), que somado à sua tendência patológica à melancolia resulta numa fossa que não tem tamanho. Louca que é, vasculha possibilidades em todos os fluidos e elementos corporais e no consultório, diante do médico, solicita a bateria de exames mais completa possível. Resultado: Saúde de ferro! É que ela resolveu inventar um novo modo para se posicionar frente à vida. Não ser mais tão orgulhosa, egoísta e durona. E se derreteu, declarou seu amor em prosa e verso, perdoou traições e sentiu o amor à flor da pele. Diz que deu em nada. Diz que deu em desrespeito. Em dor. E quer saber, diante do médico, que remédio tomar para os tremores que vem sentindo, que impeça o coração de doer enquanto bate. Que possa cessar essa alternância de dias de depressão intercalados com dias de euforia. Ela diz que é psicose. Ela diz que precisa treinar ser diferente. Veja você. Isso vai acontecendo enquanto ela tenta se adaptar à escala de Santarém. E enquanto desfruta do encontro das águas dos Rios Negro e Solimões (seis quadras da casa dela). É uma espécie de mar, ela diz. Não é lindo isso? Estar em frente a um rio onde não se vê a margem oposta. É um mar doce.  Fora esses dois, os maiores leitos de água doce que ela conhece são a Garganta Chinesa e junto do Nilo... (Pesquisei e terminei por descobrir que para muitos geógrafos o Nilo já perdeu o posto de maior rio do mundo para o Amazonas, com 6.992,06 km de extensão). Minha amiga se perde nessa malemolência e eu num texto do Arnaldo Antunes que diz: “As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz”. Aliás, também podem ser surpresas pra gente. Que nem os amigos e as coisas que eles às vezes nos dizem - as lágrimas nos atravessam e todo o mais vira fumaça sem cheiro... As coisas também têm ritmo. Isso tudo que ele diz, também é música. O Arnaldo canta as palavras e então nos surpreende com isso, que nem as palavras dos amigos. Ele diz que a música, através de um uso específico da língua, vai restaurando a integridade entre o nome e a coisa, restituindo aquilo tudo que o tempo e as culturas do homem civilizado separaram no decorrer da história. Que nem a poesia. Esse texto – “As coisas”, traz isso pra mim. Me devolve para um estágio lá no começo, lá onde a poesia mora em tudo que se diz. Eu acho que minha amiga mora lá. Eu acho que eu moro lá quando leio as cartas dela. Talvez o exercício de escrever poesia traga isso de gerar significados novos para os signos usuais. Talvez traga junto com isso um gosto de inocência. Talvez por isso as lágrimas. De todo modo, sempre me arrebata ler os textos do Arnaldo Antunes. Me conectam com a surpresa.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009


DA SÉRIE CARTA ENTRE AMIGAS: O PÊNDULO DE CHARPY

ILUSTRAÇÃO: OLI


Uma amiga me escreve e diz sobre suas saudades, que gostaria de me ver mas que agora está furiosa atrás de trabalho e também aguardando a resposta de uma senhora para alugar um espaço na casa dela.

Diz que seu irmão mora nesse lugar e tem uma suíte vaga sobre a casa dele com entrada independente. Ela diz que quer esse lugar – ao menos até que saia o resultado de uma próxima batalha que irá enfrentar (despejo de sua inquilina), depois

da qual poderá ficar na casa
de sua família e tudo será mais tranquilo. Por ora, a guerra está feia. E pede que eu torça por ela – que pode parecer pouco, mas para quem nunca pensou nessas questões de sobrevivência, o ar fica de guerra mesmo.

Minha doida e querida amiga: “Todo dia acordando para a luta, achando que o inimigo tem arsenal atômico e ela apenas um estilingue”. E a queridíssima continua e me diz que, ainda por cima, como se o tudo já não

bastasse, resolveu nesse momento delicado ler Nietzsche,

e diz: “Cara doido! Coerente, rasgante, uma paulada na testa”. O que aconteceu? As poucas afirmativas que tinha caíram por terra depois disso! Me pergunta sorrateira: “Você não tem uma casa ou apartamento para alugar para mim? Conhece alguém que precise de uma faz-tudo? Minha amiga diz estar pronta para qualquer coisa. E arremata: “Que venga el toro.”


Ela testa sua elasticidade. Admitiu que não pode

viver de outro jeito e que, definitivamente, não pertence ao grupo daqueles mais líquidos. Tudo que passa por ela passa retumbando. Depois, divaga, fala de uns textos meus que andou lendo, umas cartas publicadas.

Diz que amou ler as tais cartas, e que, embora não endereçadas diretamente a ela, a atingiram tão diretamente. Me diz: “Sabe aquela impressão de sentar num banco quente no ônibus? Você não viu a pessoa, não sabe a cara dela, mas acaba
de senti-la, pode até intuir seu peso, sua altura e sabe que a bunda é quente pacas. “Minha doida amiga. Diz aquelas verdades íntimas que por vezes ficam empoeiradas no fundo dos seres. Diz porque se permite sentir. Faz movimentos que poderiam quase parecer irrelevantes para ser feliz – como soltar os dentes da frente (são próteses, leitor) e, nua, de frente pro espelho nesse
desnudamento, amar-se, sorrir para si própria sem os dentes da frente, sentindo a doçura de amar-se assim.

A capacidade de resiliência ou nossa capacidade para resistir aos impactos, a definição disso tudo e imbricação com o nosso íntimo mais íntimo me confunde. No teste de Charpy, um pêndulo é liberado e,

ao chocar-se com o corpo de
provas do material a ser testado, perde energia e continua seu trajeto até um ponto zero. A energia absorvida pelo corpo de provas é o que vai medir a resiliência do material.
Em outras palavras, vai dar o tamanho da sua capacidade de resistir aos impactos... Isso tudo fica tão distante quando penso na capacidade
que adquirimos, eu e ela, de suportar tanta coisa, força progressiva ou impactante, simplesmente porque nos
temos. Mesmo estando ela lá e eu cá. Nos temos.

Diz que tem saudades de mim. Eu tenho muita saudade dela também. Por ora, prefiro deixar de lado essas questões sobre resiliência, tenacidade e tudo o mais que emprestamos da física. Eu não sou corpo de provas. Prefiro as palavras da minha amiga: ela disse que somos como polvo e cabemos numa garrafa, que apesar do tamanho, somos

assim, plásticas. 

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

CRÔNICA DE ESTRÉIA NO CADERNO ANEXO DO JORNAL A NOTÍCIA EM FEVEREIRO DE 2009


Olho no olho 


ilustração: PAULO GERLOFF



Sentada em frente ao computador tento extrair de mim a crônica inicial. Aquela que me representará, iniciará o contato com você, leitor, e me colocará definitivamente, de frente para o pelotão – olho no olho, sem véus. Tanto preâmbulo me coloca, incontestavelmente, muda. Assim que assinei o contrato, fui ao café que habitualmente frequento, sentei e saquei o laptop. Procedimentos iniciais, abertura de pasta e o silêncio se derramando pela mesa. Todas as quintas – se eu conseguir escrever uma por semana terão sido 44 em um ano. E toda semana falarei de algo: sapato, carrapato, poesia ou aquele grampeador do banco – sempre sem grampos. Peço um café. Sacar o tema, escrever, burilar, lapidar. Toda semana este processo se dará antes que ela possa nascer, antes que ela possa ser – a crônica.

E toda quinta alguém abrirá o jornal e dará com meu texto. Outros abrirão para ler o meu texto. Alguns me farão críticas, outros irão me elogiar, partilhar comigo sobre o grampo do grampeador dos bancos (ou da falta deles). Vou errar, dar bolas fora, acertar no alvo, vou quase chegar lá... e você leitor, estará sempre na minha cabeça. Como alguém já disse, simples e simplesmente porque não há escritor sem leitor, não há cumplicidade sem compromisso e não há jogo sem a troca – você vai pensar no que terei escrito, eu irei pensar no que você desejaria ler. Eu vou ter que cativar você – e como disse Saint-Exupery, ser eternamente responsável por esse ato.
Confesso que sou assolada pelo fácil: uma desculpa qualquer e me livro da obrigação cotidiana de observar para contar. Digo não e volto a observar só pra mim, para os meus devaneios e para meus livros. E não é que mal o pensamento me assola e já é você que está na minha cabeça? Sentado no sofá da sala, no escritório na hora do almoço, chacoalhando no ônibus, no café folheando este caderno exatamente a procura do que terei escrito, lendo meu texto para alguém. Estou irremediavelmente comprometida. Sem você já não sou, porque já sonho com nosso encontro. Então, leitor amigo, façamos assim: Tem aqui o meu email - clozingali@gmail.com - Escreva-me. Critique. Elogie. Xingue. Mostre seus dentes (no sorriso ou no grito), mas não deixe não de se revelar. O editor do jornal estará de olho, junto com você – e eu estarei lá, lembra? De frente para o pelotão – olho no olho, sem véus. Confesso que estou passada dos avessos!

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

2009 é bala

2009 é bala 




De todas as formas de mudança, a que mais gosto é a que não tece motivos para acontecer, não tem razão ou razões que a expliquem ou justifiquem – gosto daquela que se interpõe feito tiro – entre o disparo e o alvo – a razão é o entre – é ser atravessado por ela e não poder nada, a não ser conter o furo provocado, os rastilhos de pólvora e o vazio como constituição permanente de você. Qualquer que seja o lugar, independente de onde a mudança te leve, você se configurará assim, com o vazio da bala. Dar conta desse vazio é experimentar desassossegos, cheiros diferentes, rajadas de vento. É dar a estar no conflito, no sofá de uma sala de espera, somente no aguardo da sua vez de entrar. Dar ou receber o diagnóstico. Assinar ou não o contrato e assumir as prestações que te farão refém ou algoz. Os papéis todos da gaveta espalhados em cima da mesa. Um foco de luz roendo um pedaço do seu chão.

Tem uma frase que diz: coragem não é ausência de medo – é o medo mais o desejo de fazer determinada coisa, de superar aquele medo. Agora... o que nos coloca nesse ponto, exatamente no ponto onde a atitude vai fazer a diferença é que são elas... Outro dia li algo num fanzine na casa de uma amiga, alguém dizia: “Nossa, isso mexeu no arco da velha do meu inconsciente! E se perguntava: Como devo perceber isso? Como perceber de forma revolucionária? Desatrelar a percepção da alienação? 

E então talvez o melhor seja colocar todas as cartas de uma vez, começar por aquilo que nos toca mais imediatamente. Que vem do rol das urgências da vida, sabe? E fazer como o outro cara disse: tirar o véu! Desmaterializar a coisa toda para dar a ver de uma outra forma – como um animal à espreita – atravessado e revolvido pelo fato e envolvido por ele até a raiz dos cabelos. Toda a nocividade da coisa dentro. Mas sem piedade, sem devoção – simplesmente porque desse jeito a gente não vai mudar coisa alguma. A mudança é que nos muda – “nos faz acessar a potência, “criar canais, poros, portas, pontes”. Quando a gente atravessa e chega lá, a gente vê este lado do lado de lá. Mudam as perspectivas. De acordo com o cara, acessamos o estado onde nosso desejo varia para produzir um outro modo de desejar. Isso é um jeito de revolucionar. De rasgar o véu para habitar esse campo de forças dentro da experiência do tempo que nos atravessa. 


A raiz desse texto me atravessou no início de mais um ano que se coloca, que se atravessa. Na possibilidade de estarmos juntos aqui todas as quintas-feiras e toda a surpresa que isso pode acarretar. Recebi emails na sequencia da publicação da minha primeira crônica Fiquei muito feliz com a possibilidade concretizada dessa troca. Conhecer um pouco mais dos leitores,  ter a oportunidade de conhecer um pedacinho que seja das coisas que pensam. Obrigada a todos. Cada novo ano se interpõe como bala. Cada vez mais. Entre os rastilhos de pólvora e o furo permanente que nos habitará e com o qual atravessaremos os anos seguintes existe, de presente, a surpresa de podermos reinventar outros modos de desejo para implantar a boa revolução – aquela que acontece e derrama seus resultados feito semente, que cai na terra, vem a chuva, vem o sol, e então germina... Vamos?

Postagem em destaque

SOBRE QUESTÕES RESPIRATÓRIAS E AMORES INVENTADOS

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