DA SÉRIE CARTA ENTRE AMIGAS: O PÊNDULO DE CHARPY
ILUSTRAÇÃO: OLI
Uma amiga me escreve e diz
sobre suas saudades, que gostaria de me ver mas que agora
está furiosa atrás de trabalho e
também aguardando a resposta
de uma senhora para alugar um
espaço na casa dela.
Diz que seu irmão mora
nesse lugar e tem uma suíte vaga
sobre a casa dele com entrada
independente. Ela diz que quer
esse lugar – ao menos até que
saia o resultado de uma próxima
batalha que irá enfrentar (despejo de sua inquilina), depois
da qual poderá ficar na casa
de sua família e tudo será mais
tranquilo. Por ora, a guerra está
feia. E pede que eu torça por ela
– que pode parecer pouco, mas
para quem nunca pensou nessas
questões de sobrevivência, o ar
fica de guerra mesmo.
Minha doida e querida amiga: “Todo dia acordando para a
luta, achando que o inimigo tem
arsenal atômico e ela apenas
um estilingue”. E a queridíssima
continua e me diz que, ainda
por cima, como se o tudo já não
bastasse, resolveu nesse momento delicado ler Nietzsche,
e diz: “Cara doido! Coerente,
rasgante, uma paulada na testa”.
O que aconteceu? As poucas
afirmativas que tinha caíram por
terra depois disso! Me pergunta
sorrateira: “Você não tem uma
casa ou apartamento para alugar
para mim? Conhece alguém que
precise de uma faz-tudo? Minha
amiga diz estar pronta para
qualquer coisa. E arremata:
“Que venga el toro.”
Ela testa sua elasticidade. Admitiu que não pode
viver de outro jeito e que,
definitivamente, não pertence
ao grupo daqueles mais líquidos.
Tudo que passa por ela passa
retumbando. Depois, divaga, fala
de uns textos meus que andou lendo,
umas cartas publicadas.
Diz que amou ler as tais cartas, e que,
embora não endereçadas diretamente a ela, a atingiram tão diretamente. Me diz: “Sabe aquela impressão
de sentar num banco quente no
ônibus? Você não viu a pessoa,
não sabe a cara dela, mas acaba
de senti-la, pode até intuir seu
peso, sua altura e sabe que a
bunda é quente pacas. “Minha
doida amiga. Diz aquelas verdades íntimas que por vezes ficam
empoeiradas no fundo dos seres.
Diz porque se permite sentir.
Faz movimentos que poderiam
quase parecer irrelevantes para
ser feliz – como soltar os dentes
da frente (são próteses, leitor) e,
nua, de frente pro espelho nesse
desnudamento, amar-se, sorrir
para si própria sem os dentes
da frente, sentindo a doçura de
amar-se assim.
A capacidade de resiliência ou nossa capacidade para
resistir aos impactos, a definição
disso tudo e imbricação com o
nosso íntimo mais íntimo me
confunde. No teste de Charpy, um pêndulo é liberado e,
ao chocar-se com o corpo de
provas do material a ser testado,
perde energia e continua seu
trajeto até um ponto zero. A
energia absorvida pelo corpo
de provas é o que vai medir a
resiliência do material.
Em outras palavras, vai dar
o tamanho da sua capacidade de resistir aos impactos...
Isso tudo fica tão distante
quando penso na capacidade
que adquirimos, eu e ela, de
suportar tanta coisa, força
progressiva ou impactante,
simplesmente porque nos
temos. Mesmo estando ela lá
e eu cá. Nos temos.
Diz que tem saudades de
mim. Eu tenho muita saudade
dela também. Por ora, prefiro
deixar de lado essas questões
sobre resiliência, tenacidade e
tudo o mais que emprestamos
da física. Eu não sou corpo de
provas. Prefiro as palavras da
minha amiga: ela disse que
somos como polvo e cabemos numa garrafa, que apesar do
tamanho, somos
assim, plásticas.
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