quinta-feira, 25 de junho de 2009

Sobre Quintana, o amor e o espiar-se.

crônica publicada no caderno ANEXO do Jornal A Notícia em 25 de junho de 2009.

Depois de encerrar a novela com Rubens da Cunha aqui e vivenciar por quatro semanas as intermitências de Iara e Tiago, continuo com vontade de falar de amor. E daí pensei em Mario Quintana. Um amigo me emprestou um livrinho dele. Um livrinho de bolso, perfeito pra carregar na bolsa. Vou socializar esse ato. Eu sabia de Quintana e tinha na cabeça: “Sonhar é acordar para dentro”. Despertar para o inconsciente. E também: "Fechei os olhos para não te ver e a minha boca para não dizer... E dos meus olhos fechados desceram lágrimas que não enxuguei, e da minha boca fechada nasceram sussurros e palavras mudas que te dediquei. O amor é quando a gente mora um no outro." Essa última frase era a que eu sabia na ponta da língua. E isso já me era tão lindo. Comecei a percorrer o livrinho. Quantas minúcias e delicadezas!
Considerado o poeta das coisas simples e com um estilo marcado pela ironia, profundidade e perfeição técnica, foi antes um pensador com muitas idéias que estão sintetizadas em seus poemas. Fui pesquisar e achei uma fala sua: “ Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão” Dizia também: “Poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação”.
Impossível não pensar a nós mesmos diante de tal confissão. Acho que é isso que acontece quando lemos poemas: nos colocamos diante de nós mesmos e entre esse olhar - como um buraco de fechadura – nos enxergamos como se nos espiássemos a nós mesmos.
Folhear Quintana me trouxe isso: o espiar-me através das confissões do poeta e o desencadear de coisas que foram se sucedendo desde que tomei o livrinho em minhas mãos. Achei, por exemplo, uma carta dele a um jovem poeta em que ele diz coisas como: “Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá”. E o mais encantador – ele dizia que sonhava escrever um poema “que fosse como um fruto sumarento, cujo sumo escorresse pelos cantos da boca antes que a pessoa compreendesse seu sentido”. Feito certos tipos de amor. Feito o “efeito” dos poemas do livrinho dele. Então, querido leitor, espie-se e seja você mesmo do outro lado da porta. Arrisque um novo olhar. Um novo livro. E páginas e páginas irão se desdobrar diante dos seus olhos. E olhares e olhares diante da sua vida. E termino, como não poderia fazer diferente, deixando um pouco do Quintana aqui, através de seu poema “auto-retrato”, onde se pode sentir a feitura do poema entrelaçada à feitura de si e da criação de algo que funciona como um “espelho” para quem lê, tocando nossa inconstância e nos pedindo eterna reconstrução. No retrato dele, vemos a nós mesmos diante disso tudo: da dificuldade e da beleza de “se revelar”.


No retrato que me faço
– traço a traço –
Às vezes me pinto nuvem,
Às vezes me pinto árvore...

Às vezes me pinto coisas
De que nem há mais lembrança...
Ou coisas que não existem
Mas que um dia existirão...

E, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
Minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco

quinta-feira, 18 de junho de 2009

NOVELA POR DUAS MÃOS, um experimento.

A novela abaixo é descrita em oito capítulos e foi um trabalho conjunto realizado com o escritor Rubens da Cunha. Cada capítulo foi publicado no espaço de crônicas no Caderno ANEXO do Jornal A Notícia, de Joinville, pelo período de quatro semanas. Rubens da Cunha criou o personagem Tiago e eu criei Iara. Partindo de um mesmo roteiro cada um deu vida própria à seu personagem, mostrando os diferentes pontos de vista em relação às situações vividas por ambos. Foi uma experiência encantadora e que nos deixou muito felizes.


Capítulo 1, por Rubens da Cunha: TIAGO E A POSSIBILIDADE

Talvez eu tenha descoberto hoje, meio ao acaso, a paixão no sentido mais comum do termo: o suor, o tremor das mãos, aquele anuviamento contínuo dos olhos e das ideias. Tenho 38 anos, sou um homem banal, descasado, casado novamente, descasado mais uma vez. Será que estou apaixonado? É a primeira vez que sinto algo parecido, tenho certeza. Antes, a vida prática encaminhou as necessidades, o jogo da aparência determinou as escolhas. Assim, o costume, esse deus dos comuns, alisou meu corpo, e disse que aquilo tudo que eu tinha era amor. Com a primeira esposa, o costume me enganou por 10 anos, com a segunda mais 6 anos. Meu nome é Tiago Nascimento. Tenho dois filhos do primeiro casamento. Sou motorista de taxi.
Talvez eu tenha descoberto hoje a rapidez com que a paixão pode se apossar de um corpo. De repente, ela abriu a porta da frente, sentou-se e disse: segue! Nem deu tempo de pedir para ela ir para o banco de trás. Segue! Segue! Arrisquei perguntar algum destino. Nada disse além de um não sei. Pensei em oferecer ajuda, liguei o rádio. “nunca se entregue, nasça sempre com as manhãs, deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar, fé na vida, fé no homem, fé no que virá, nós podemos tudo, nós podemos mais...” cantarolou um Gonzaguinha enternecido. Ela quase riu, olhou para mim, parecia não acreditar que um motorista de taxi escutasse essa rádio, esse tipo de música. Tô precisando ouvir isso, aumenta. Depois iluminou-se, silenciosa, ao meu lado. Foi difícil prestar atenção no trânsito, pois tudo o que eu queria ver era seu perfil triste, misterioso. O cabelo preso, mas com uma mecha solta que teimava em cair sobre os olhos. Com a mesma mão que enxugou as lágrimas, arrumou o cabelo. Eu vi no gesto um grau de tristeza e de liberdade. Aquele jeito de arrumar o cabelo, e quem sabe ser livre, não saiu mais da minha memória desde então.
Pediu para descer numa esquina movimentada da zona sul. Pagou, agradeceu. Eu, sem saber o que estava acontecendo, dei meu cartão, ligue quando precisar. Ela riu novamente e saiu apressada. Não voltei mais trabalhar. Precisava entender o que seria esse sentimento que me movia, melhor, me estagnava. Meus amigos sempre me dizem: Tiago é homem culto, passa muito tempo lendo dentro do carro. Ler para mim é uma válvula de escape. Sempre tive uma vida medíocre, faltou-me a chama da ambição, da busca por algo melhor, foi por isso que minhas mulheres me deixaram. Você é muito parado, foi o veredicto das duas antes da separação. O fato é que nenhuma delas, ou qualquer outra que tenha entrado em minha vida, provocou aceleração no meu sangue. Nos vinte minutos que tive com essa mulher sem nome, eu soube pela primeira vez o que era velocidade. Espero que ela me ligue. Espero mais coragem da próxima vez. Eu sou Tiago Nascimento. Talvez a partir de hoje eu vá me chamar Tiago Renascimento.


Capítulo 2, por Clotilde Zingali: IARA E AS DÚVIDAS, sempre elas.

Aquele motorista de táxi deve ter pensado que sou doida. Devo ser realmente. Só o fato de estar pensando se ele pensou já dá notas disso. Tenho 39 anos e continuo me comportando como se tivesse 17. Até isso é ridículo em mim. Tem muitas meninas de 17 anos que são mais mulheres do que eu. Queria lembrar se quando criança que idéia eu tinha das coisas. Eu fui criança algum dia? Não me lembro efetivamente de muita coisa. Melhor seria dizer que não me lembro de nada. Na verdade, esse motorista de táxi talvez tenha sido a única pessoa que me conheceu inteira (uma mulher vertida em lágrimas na frente de um estranho é uma mulher inteira). Eu pedi para ele aumentar o som do rádio para eu vibrar junto com as ondas sonoras emitidas pela voz do Gonzaguinha. Ele colocou um cd do Gonzaguinha enquanto eu chorava. Acho que ele quis dar uma quebrada no clima. Acho que ele não entendeu nada... Até que ele era bonito. Era sim. O rosto meio quadrado, cabelo meio desarrumado. Tinha um cheiro bom no carro. Um cheiro que não era de nenhum sachet de baunilha ou qualquer coisa artificial. Era um cheiro bom. Nossa. Devo ser doida mesmo. Não sei porque estou pensando esse monte de coisas sem sentido. O gosto musical daquele homem. Sei lá. Deve ter sido efeito da música. Só isso. Música me ilumina. Tem um não sei o quê em mim que se vê inteira dentro da letra, eu começo uma espécie de “vivenciar” aquele sentimento, e quando vejo, não sou mais eu, ou sou eu mesma com todas aquelas dissonâncias. Sei lá. Ainda bem que desci naquela esquina, meio perto e meio longe de casa. Assim pude saltar do carro, da ideia que ele teve de mim, ou de qualquer ideia que eu tenha tido. Pude voltar andando pra casa. Andei uns quase 10 km e como sempre, como sempre faço quando caminho, rebobinei minha vida. Até quando vou rebobinar minha vida? Tenho tempo pra isso? Cada vez mais eu me convenço que não. Quando olho no espelho, não vejo o que sou. Vejo o que estou fazendo. O medo de chegar sozinha lá na frente. Sozinha nessa vida. Parece que sinto uma dor tão grande... Um arrependimento por tudo que não estou fazendo. Eu não estou fazendo. O que faço é ter medo. Um medo que me escapa de tão grande que é. E o medo de vencer esse medo me faz chorar. Que nem quando eu chorei naquele táxi. Talvez eu devesse ligar para ele. Pedir desculpas pelo descontrole. Sabe lá a vida do cara? Eu fico aqui olhando pro meu umbigo. Enfiada no meu sofrer. Enfiada. Será que guardei o cartão? Paguei a corrida, sorri amarelo pra ele e desci. Será que ele percebeu o amarelo? Talvez não. Entre tantos defeitos, vivo disfarçando. Eu sou um engodo. Eu queria ligar pra ele e pedir desculpas. Chego em casa, me jogo no sofá e viro a bolsa. Tá aqui. Tá aqui. Começo a discar, mas desligo em seguida. Tem cabimento fazer uma coisa dessas? “Vai ler um livro, minha filha”. É isso que meu pai diria. Ou deveria ter dito. Meu nome é Iara, e penso que minha mãe, sem o saber, imputou em mim essa sina de ser bonita, cantar feito um sabiá e matar os homens que me ouvem. Vou morrer sozinha numa fonte dentro da mata. Dois dias depois não resisto aos pensamentos que insistem. Pego o celular, disco. Só que dessa vez eu o escuto tocar. Chama duas vezes e de novo me submeto ao medo e desligo. Eu desligo.
Capítulo 3, por Rubens da Cunha: TIAGO E A COINCIDÊNCIA

Eu vi a mulher uma vez na vida, e vi só de banda, e fiquei assim... adolescente. Foi antes de ontem, ela não me ligou. Mas por que haveria de ligar? Eu pedi? Eu disse vamos sair, me liga? Não, eu entreguei o cartão e disse se você precisar de alguma coisa, me liga. Ela não precisou, Quando uma mulher igual aquela vai precisar de alguma coisa? Quase dois dias nesse estado lastimável. Agora apareceu esse número no celular. Será que...? Não, claro que não. Por que ela levaria dois dias para me ligar? Por que eu, antes tão firme nas certezas, agora só penso por perguntas? Não atendem o número. É, Tiago Nascimento, teu renascimento durou menos que 48 horas.
Chega de perguntas. Chega desse sentimento de impotência, de perda de uma oportunidade. Hoje, cada um que se aproximou do carro fez com que eu a visse primeiro, depois é que me dava conta da loucura. Estou voltando de uma corrida, foi o mesmo percurso que eu fiz para ela, mas a passageira tinha um endereço, era uma possibilidade de retorno. Já aquela mulher... eu a deixei no meio da rua, no meio de uma cidade com quinhentos mil habitantes.
Começa a chover forte, quase nem percebo que alguém fez sinal para eu parar. Estaciono a uns 30 metros. Olho pelo retrovisor. Não pode ser. Ela. Saio do carro para abrir a port. Ao caminhar abaixa o guarda-chuva sobre o rosto. Não me vê, quando se aproxima levanta o guarda-chuva. Estacamos os dois, molhados. Constrangidos? Felizes?
Ouço um que coincidência. Respondo um pois é. Ela pede para sentar novamente no banco da frente. Abro a porta, ela se acomoda. Dar a volta no carro leva uma eternidade. Erro marcha, o carro morre. Ela ri, acontecia sempre comigo, por isso deixei de dirigir. Eu respondo que isso nunca aconteceu antes. Ela ri mais ainda. Percebo a idiotice dita, não sei o que fazer. Não vai me perguntar para onde quero ir? Rápido, Tiago, renasça! Renasça! Talvez você queira ir a um outro lugar? Pergunto sem olhar para ela. O trânsito cheio das dezoito horas. Um seria interessante cai macio dentro de mim. O sinal fecha, posso olhar melhor seu rosto. Não chora hoje. A pele úmida, sem qualquer cobertura que não seja o mistério. É linda.
Meu nome é Iara. O meu Tiago, respondo, um pouco mais calmo, ainda adolescente. Eu sei, vi no teu cartão, eu te liguei. Agora te devo duas desculpas. Ela olha para mim enquanto fala, enquanto tenta explicar a atitude intempestiva da primeira vez, e também a ligação não completada. Não ouço, quer dizer, não atino suas palavras apenas me acariciam como música, são palavras sem sentido, parecem palavras-braços me segurando, me acariciando. Você está me ouvindo? Estou, estou te ouvindo como nunca ouvi ninguém.
Continuamos dentro do carro, ela falando coisas banais, sérias, divagando sobre a vida. Eu complementando, afirmando, percebendo estradas quase inéditas dentro de mim. A chuva continuava, firme. Dentro do carro, eu, Tiago Nascimento era um homem regado pelas palavras aquáticas de Iara.

Capítulo 4, por Clotilde Zingali: EU ACREDITO EM COINCIDÊNCIAS

Uma vez li em algum lugar que nossa existência aqui não passa de uma sucessão de instantes emparedados entre duas coisas: um “tudo” que ficou pra trás e um “nada” que há pela frente. E que não há espaço para coincidências e probabilidades. Mas como pode ser isso? Eu gastei tantos neurônios pensando naquele motorista de táxi. Tiago era o nome dele. E por fim não tive coragem de ligar. Dá pra acreditar que do alto da minha “não atitude” ontem desabou do alto uma chuva sem tamanho e sem aviso prévio e esse homem aparece do nada dentro de um táxi que eu parei? Eu fiz sinal pro táxi e era ele lá dentro? Como eu posso acreditar que não há coincidências? Alguém já disse que nada acontece por acaso – tudo acontece como deve ser, e quem procura acha, mas não necessariamente o que estava procurando. Será?
Eu e ele ali, aquele aguaceiro...Inacreditável. Ele ficou me olhando com aquele olhar. Eu deixei ele me olhar, meio estacada que estava. Mas eu acho que olhei pra ele também. A gente ficou se olhando e a chuva ficou molhando a gente. Antes que o instante nos colocasse dentro do carro tive tempo de balbuciar: que coincidência. (ah, eu não acredito que falei aquilo). E ainda pedi pra sentar no banco da frente. (de novo). Eu não acredito nas coisas que faço. E nem nas coisas que ele fez dentro daquele carro. Errou a marcha, o carro morreu. Ele parecia um adolescente. Acho que ficou nervoso. Sei lá. Eu gostei daquilo, por pura osmose também eu me senti adolescente. Ele ligou o som por fim. Aliviamos na voz que soava. Era Caetano dessa vez. Enquanto ele dirigia e entre o segundo que pensava entabular uma conversa e admirava o despenteado do cabelo, eu maluca pensei que naquela situação ele poderia sugerir um café, quem sabe. Eu aceitaria. E ele mudo com aqueles olhos me olhando entre um “ser discreto” e um “muito pelo contrário”. Eu rompi e disse meu nome. Meu nome é Iara. O meu é Tiago, ele disse. Sorrimos. Lembrei de súbito das desculpas que eu queria ter ligado pra pedir. Eu não liguei. Desculpa por aquele dia. Acho que você não entendeu nada. Não tinha sido um dia muito bom. Aliás, eu vinha numa sequência de dias não muito bons e acabou que descarreguei tudo aquele dia – bem no seu táxi, bem na frente de alguém sem nada a ver com tudo aquilo... desculpa. Sei lá. Eu fiquei lá falando uma porção de coisas pra ele e via ele só me olhando. E vendo ele me olhando eu mesma me olhava pelos olhos dele e pensava se podia estar acontecendo o mesmo com ele. De quando em quando ele comentava, falava outras coisas e eu me via dissonando no timbre da voz, no movimento da boca – no jeito dele e no jeito de nós dois ali naquele carro, naquele carro debaixo da chuva que seguia sem destino. Existe destino? Pensei. A coincidência que alguns dizem que não existe ficou entranhada na música que embalava agora esse nosso desvendar. Quis cantar junto. Mas silenciei para fazer durar aquilo tudo. Era Caetano cantando sua Queixa “... dessa coisa que mete medo, pela sua grandeza, não sou o único culpado, disso eu tenho certeza. Senhora, e agora, me diga onde eu vou, amiga, me diga... me diga onde eu vou”. Eis que então ele rompe a parede (permeável ou não, havia entre nós uma parede – uma pedra). Não fala no café que pensei, mas fala de irmos para algum lugar. Algum lugar. Eu quero ir com ele pra esse “algum lugar”. Depois a gente pensa onde. Eu aceito. E eu lá vou duvidar das coincidências? Não... não eu.

Capítulo 5, por Rubens da Cunha: TIAGO E AS DÚVIDAS

No banco em que ela sentou tantas vezes, um buquê de rosas vermelhas e uma caixa de bombons. Estou sozinho dentro do carro. Não estou trabalhando. Hoje faz três meses que ela sentou-se aqui pela primeira vez, chorando. Três meses que Iara acontece em minha vida. Bombons e rosas vermelhas. Tornei-me um romântico, pior, sem nenhuma originalidade. Fico aqui repetindo os padrões, os clichês. Estou na frente de seu apartamento, do outro lado da rua. A luz que vejo demonstra que ela está me esperando. Foi o que combinamos. Combinamos em muitas coisas desde que nos encontramos pela segunda vez, a cada dia Iara se descortina um pouco para mim. Estou aqui sem saber o que fazer. Nosso namoro, relacionamento... (que nome dar? tem nome?) está divertido, o sentimento inicial ainda surge sempre que a vejo, mas o que me angustia é a instabilidade, as zonas de sombra de Iara. Há nela, areias movediças demais. Sempre fui homem de poucos repentes, Iara se mostra instável demais para um velho como eu. Talvez esse seja o ponto: tenho 38 anos, mas todo uma carga de velhice espiritual que não se encaixa naquela imprevisibilidade adolescente que ela ainda carrega. A paixão me fez ficar também meio adolescente, mas nada que realmente me transformasse, que alterasse minha condição de homem metódico. Mesmo assim, eu alterei muitas coisas, mudei muito meu comportamento, mas Iara está sempre além das fronteiras, sempre um passo muito próximo do abismo, da mina terrestre, do fosso. Não sei se tenho ciúme, medo, se por ela ter tido mais vida do que eu pode ter mais coragem do que eu. Olho as rosas, os bombons. Essas bobagens se perderão dentro de Iara. Talvez ela se compadeça da minha ingenuidade e fique um pouco mais comigo. Talvez se encha e me mande embora. Estou aqui, quase uma hora pensando se devo continuar com essa história, se devo atravessar a fronteira, tantas vezes atravessada por Iara. Minha ex-mulher me procurou, queria voltar. Disse que estava arrependida e que me viu tão diferente. Perguntou por que eu nunca fui tão diferente com ela. Eu não soube responder, ou talvez soubesse, mas não quis ofendê-la. O fato é que a estabilidade emocional da minha segunda mulher mexeu ainda mais comigo. Eu agora vivendo nos extremos positivos e negativos, eu agora homem sem centro, sem esteio que me sustente, tenho que tomar uma decisão. Iara me espera, talvez com os mesmos questionamentos. Quer dizer, com questionamentos ao contrário. Ela que sempre viveu nas margens, conseguirá viver no centro? Ela que sempre balançou nada firme, conseguirá ser fixa? Conseguirá se aproximar de um homem raso, de um homem que é possível se vislumbrar começo meio e fim?
Estou no corredor que leva a seu apartamento. Sem as rosas. Apenas a caixa de bombons. Ela abre a porta. Eu a beijo e lhe entrego os bombons. Você esqueceu as rosas vermelhas, ela diz, fechando a porta atrás de si. Dentro de mim, portas e janelas se abrem e se fecham também, só não sei por quanto tempo.

Capítulo 6, por Clotilde Zingali: DANÇAR É SE DEIXAR LEVAR

A gente está junto há três meses mais ou menos. Lembro que era abril quando nos conhecemos. Um abril chuvoso. Por isso a gente se encontrou por acaso naquele dia. Agora, o dia eu não lembro não... Aquele dia agente acabou indo tomar um choppinho num boteco ali no centro. A gente ficou um pouco sem graça no início, mas foi diluindo depois. Conversamos sobre coisas tantas. O que eu fazia e ele. O básico quando duas pessoas conversam pela primeira vez. Achei tão engraçado ele me perguntar onde eu estava em 1988. É isso de achar alguém tão especial que se pensa no passado. Onde estávamos quando a vida acontecia para ambos? Mas isso é puro romancear. “O tempo não para”, já dizia Cazuza. Mas isso é romancear também. De qualquer forma, agora é julho. Estamos em 2009. E estamos como estamos. Temos tido momentos incríveis juntos. O que mais gosto é que ele gosta de dançar. A primeira vez que me chamou eu fiquei meio aflita. Às vezes sou dura como pedra. E tenho uma certa mania de estar no controle. Pra dançar a mulher tem que se deixar levar. Isso me assustou um pouco. Mas Tiago não medrou, não. Bem seguro ele disse: Deixa comigo que disso eu entendo. Ah, eu amei. Adoro homens seguros. Mesmo que seja só fachada, já é um estímulo e tanto pra fazer virar de verdade. Quando me tirou pra dançar a música era forró – Gonzagão – e lá fomos nós. Passou o braço em minha cintura de um jeito que me senti absolutamente pronta. A gente riscou aquele chão inteiro. Foi um, foi outro e outro. Voltei pra mesa parceira dele. Amei. Longe das pistas ele é mais quieto, mas não chega a ser distante. È apenas ele e seu silêncio. Ele lê muito. Não leu ainda na minha presença, mas algumas vezes liguei pra ele e ele disse: Estava lendo. Ele disse que suas duas ex-mulheres o deixaram porque ele lia demais. Mas que não consegue se livrar disso. Nem quer. Ele gosta de ler. Eu? Bem, eu adoro sair, ver pessoas. Ver o sol, ver a lua. Eu gosto de ler o mundo, do jeito que ele é. Pois bem. O mundo tem leitores. E Tiago é um deles. Eu acho também que ando numa fase de intensidades superlativas. Intensidades superlativas são efêmeras. E estou bem com isso e com o restante do período que não é superlativo, mas é o que há. Esse desejo está em mim, não posso ser diferente. Já ele não. É mais quieto. Mas eu quero que essas ondas possam chegar até ele. É trabalhoso, mas normalmente eu consigo. Ontem, por exemplo: Ele me ligou e disse que poderia vir à noite. Disse pra eu não me preocupar com nada. Tudo por conta dele. Chegou com algumas compras e foi para a cozinha. Eu gostei de ver ele ali, sem muita intimidade com o ambiente mas fazendo a coisa acontecer. Seguro. Entre achar panelas, talheres, arrumar a mesa e as coisas todas, a gente ficou falando de coisas banais, tomando vinho, rindo muito e ficando outras vezes em silêncio. A gente “matou” aquela garrafa de vinho que ele trouxe. Quando acordei ele já não estava mais... só um bilhetinho e um cheiro bom de ontem espalhado pela sala. E louças espalhadas pela cozinha. Não sei se vem hoje. Acho que não. Aliás, nunca nos vimos por dois dias seguidos. E tem sido bom isso. Nada de vida conjunta, cachorros e café da manhã todos os dias pela manhã. Eu prefiro o inusitado, os momentos superlativos que depois eu faço germinar. Sei que posso contar com ele para algumas coisas e ele também pode. Isso basta. Apenas algo me incomoda. Tenho ainda medo de cantar quando estou com ele, justo eu que sou tão musical. Tenho um medo estranho que tudo possa se perder e ele seja mais um fora da superfície, que afinal é onde se pode viver. Mas tudo bem, penso silenciosa enquanto cantarolo as músicas que sintonizam com minha existência. Uma para cada momento. Como que talhadas para mim. “... nós dois que sequer nos parecemos e não cabemos no mesmo espelho mas nos olhamos toda manhã. A ferrugem mesmo pouca corrói os trilhos, as ruas nos atravessam sem olhar pro lado, estou em você...”

Capítulo 7, por Rubens da Cunha: TIAGO E A DECISÃO

Hoje passei o dia com meu filho mais velho. É o que se parece mais comigo, tanto, que às vezes, descumpre os dias combinados e aparece para me fazer uma visita surpresa. Tem 11 anos e uma atenção superior. Tomara que não a perca. Meu filho me questionou sobre Iara, quando ele vai conhecê-la. E me falou sobre o amor. Não que ele saiba alguma coisa profunda e prática a respeito, mas na sua atenção capturadora de detalhes, me disse que eu deveria ser mais livre, esquecer o medo e amar profundamente. Olhei para ele de forma curiosa, querendo saber onde ele aprendeu esse discurso. Teve um palestrante lá na escola e ele falou isso, achei que se encaixava com você.
Não há dúvida que esquecer o medo é libertar-se e que o amor profundo só se dá na liberdade. Eu deveria deixar de ser motorista de táxi e virar palestrante em escolas de ensino fundamental. Como tudo na vida, falar é fácil, por em prática fica mais difícil. Meu relacionamento com Iara não se oficializou ainda. Estamos e não estamos. Somos e não somos. Iara continua sendo um lago de mistério, ela e suas canções. Eu continuo enfurnado nos meus livros e em minha vida cotidiana, sem muita coragem para equilibrar esse jogo, ou seja, trazê-la para a vida cotidiana, oficial, ao mesmo tempo eu ir para as profundezas de um amor vasto, inseguro. Chego num ponto em que uma decisão deve ser tomada. Esqueço os medos e amo profundamente, como pede meu filho, ou assumo o medo e me desfaço desse amor, antes que ele se torne sofrimento, vício.
Chamo Iara para sair. Ela me pergunta para onde vamos, digo que a lugar nenhum, vamos apenas andar de carro pela cidade, vamos apenas conversar dentro desse táxi em que ocorreu nosso primeiro encontro, e nosso reencontro, aqui onde leio a maior parte dos meus livros e onde, nos últimos meses, ruminei dúvidas e felicidades. Converso com Iara longamente, sobre coisas que até então eu tinha deixado do lado de fora do nosso relacionamento. Falo dos meus desejos, dos meus filhos, das minhas ex-mulheres, dos meus pais e amigos. Falo dos meus pequenos vícios, da minha quietude, da superficialidade com que eu tinha me envolvido amorosamente até então. Falo do seu corpo, da sua presença de luz e sombra dentro de mim, falo das insônias que tive, da fome de vida que ainda carrego, do amor, da liberdade, da palestrante na escola do meu filho. Falo e dirijo. Iara ouve, às vezes ri, às vezes fica muito séria. Entrevejo até lágrimas. Pela primeira vez falei mais do que ela, pela primeira vez falei mais do que a mim mesmo em qualquer outro momento da minha vida.
Depois desse meu fluxo de fala, nos olhamos longamente e peço para Iara ficar comigo mais do que ela já esta. Sabíamos nada do futuro. Sabíamos apenas que éramos dois adultos encontrados, encontrando-se na vida.

Capítulo 8, por Clotilde Zingali: IARA E O AMOR PELA PRIMEIRA VEZ, mas não sem medo. Quem não os tem?

Tem mais ou menos oito meses que eu e Tiago estamos juntos. E eu o amo. É engraçado falar assim. Sentir assim. Porque sinto que é “de verdade”. Se eu for colocar tudo sobre a mesa, eu sou obrigada a admitir que amo pela primeira vez. Sim. Não tenho como e nem quero fugir disso. Tive outras pessoas (inclusive, quando conheci Tiago eu estava com alguém), e sei que nunca senti isso antes. Outro dia ele me chamou pra sair. Falou que íamos a lugar nenhum, só rodar de táxi pela cidade e conversar. Ele falou tanta coisa... Se abriu, falou de seus receios, suas vontades. Falou dos seus desejos. Da sua realidade, do seu filho. Eu achei tão lindo aquilo. Todo o silêncio que presenciei nesses meses, as apreensões que eu percebia e ele silenciava. Ele deixou vir à tona. Ele deixou. Eu fiquei quase quieta enquanto ele falava. Só olhando o olhar dele, a boca que mexia e as palavras que saiam dela, e o despenteado dos cabelos que eu adoro. Ele nem imagina minhas suspeitas... Quando por fim ele terminou, perguntou o que eu achava. “Eu acho você lindo”. Ele pediu pra eu parar de brincar, que era sério. Aquilo tudo era muito sério pra ele. Pra mim também era. Cada palavra que ele usou. Cada frase. As dúvidas que vieram junto. Os medos e receios intercalados. Mas sobretudo, o desejo de lidar de peito aberto com isso tudo. Tiago ainda não sabe, mas talvez eu esteja grávida. (quero muito ter um filho com ele). Eu. Justamente eu que até agora não tinha tido vontade. Sim. Sei que tenho 39. Primeira gravidez. Aquilo tudo que dizem. Mas caso se confirme eu quero tentar. Ah, eu quero muito ter um filho com ele. E se for um menino, tiver o cabelinho despenteado do pai e aquele jeitinho pra dançar... Eu não vou resistir. Mas isso tudo são idéias, idéias de um sonho que a gente tem que construir – pedaço por pedaço, se for verdade. Ontem ele veio aqui. E antes de ontem também. E na semana retrasada ficou três dias inteiros aqui comigo. Na semana passada dois. Mas antes de ontem, quando ele ligou dizendo que vinha, eu dei um tapa na casa, tirei roupas e papéis do meio do caminho e preparei um Yakissoba pra gente. (Ele adora Yakissoba). Dentro de mim uma vontade maior que eu de cantar pra ele e vencer a minha barreira! Pois se ele, mesmo cheio de receios, foi capaz de se mostrar por inteiro; eu também quero dizer o que fica no fundinho do coração e que a gente termina mascarando. Como isso do filho (se vier), de cantar na frente dele, pra ele, de dizer: “Sim, eu quero tomar café da manhã com você todos os dias pelas manhãs”. Enquanto arrumava a casa eu escutei umas quatro vezes um CD da Adriana Calcanhoto que é meu xodó. Quando ele tocou a campainha, letra e música me compunham. Destranquei, virei a maçaneta, puxei ele pra dentro devagarzinho e cantarolei: “Entre por essa porta agora e diga que me adora, você tem meia hora pra mudar a minha vida. Vem que o que você demora é o que tempo leva...”. Ele sorriu tão meu. Disse que minha voz era linda. E ficamos um tanto lá a nos fitar. Eu puxei Tiago pra cozinha e levantei a tampa da panela. Ele sorriu. E eu sorri tão dele... O futuro é o dia a dia que a gente constrói. Ainda assim é incerto. Mas a gente tá com disposição pra escrever esse futuro. Pra construir esse dia a dia. Ontem falei pra ele do menino... da minha suspeita. Do meu desejo... ele disse: “Eu prefiro uma menina (e sorriu meio nervoso), mas quero sim. Quero ter esse filho com você. Tenho um medo tremendo... Mas eu quero. Sorrimos um.

Postagem em destaque

SOBRE QUESTÕES RESPIRATÓRIAS E AMORES INVENTADOS

http://metropolitanafm.uol.com.br/novidades/entretenimento/imagens-incriveis-mostram-a-realidade-das-bailarinas-que-voce-nunca-viu...