domingo, 27 de março de 2011

SALA DE JANTAR

Maria deita o olhar científico e atento para Adelaide e todos que estão na sala. É capaz de se misturar com os pensamentos e de lá retirar sumo. É um jogo perigoso. Apreende o que em vão tenta esconder-se e esparrama-se pelo chão da sala. Uma espécie de sentimento que lhe impinge inadvertida sublimidade. Quer se desapropriar dos discursos, daquilo que fala por ela e não é ela. Olha a cachorrinha e lembra do gosto de correr pela praia e fugir das ondas. Observa Raul. Nada do que diz persiste ante o frenético balançar do rabo roçando-lhe as pernas. Quero ser salva pelo apelo! Me redimir. Então ele diz pra ela não dizer o que escreve. O que nos atravessa não deve ser dito nem escrito. Ela diz para ele que nada resiste ao que se impõe e aniquila, e sorri o ridículo da sua circunstância. Ela ama. O olhar da cachorrinha impede e impele. Para evitar equívocos, toma o cuidado de avisar que é apenas e tão somente a circunstância daquele abanar que a define.

Odair olha o mundo através e por detrás dos óculos escuros. Sabe que eles escondem os olhos de quem olha e despertam em quem é olhado “um não saber como se é olhado”. Ele olha as outras pessoas de um lugar chamado palco – que é uma espécie de tablado mais alto onde uns ficam distintos dos outros – e as coisas são vistas dessa perspectiva. Desse lugar olha para Gisele. Sabe que não fosse a inconstância das coisas nem teria percebido tudo que se transforma em areia na pá do moinho que roda ao vento. Ele desacredita. Sente que nada do que faz é capaz de gerar energia. Sente o peso do vácuo. O mormaço que arde na pele. Ainda há de flutuar ante o apelo do vento. Suspender. Ela sorri a vontade de ir junto. Mandar tudo para o inferno. E pensa onde mesmo é o inferno. Onde?

Maria torna seu olhar doce sobre a mesa. Doces e salgados para degustar. Ela gosta de degustar. Sentir os sabores e o trabalho das papilas. A cachorrinha ainda abana o rabo. Quer degustar. Maria compreende o que pesa em Raul e quer subtraí-lo desse esforço. Mas ele não cede. Quer a cruz. Odair, por detrás dos óculos diz: Você pensa que sabe das coisas. Mas não duraria um só segundo na vida que fervilha e eu seguro nas mãos. Isso eu sei e garanto a você.

Maria olha Adelaide e sente uma lufada de desespero. Mas nem que todo o impetuoso calor da menopausa fosse jogado sobre o esverdeado dos olhos dela, nem assim Adelaide deixaria de existir e de mostrar que a vida é um jogo de absoluto risco. Maria tem medo e sabe que não lhe resta alternativa senão tatear o que sobra. O que ela tem, afinal. Tem?

Odair olha Adelaide. Olha Maria. Nem sabe o que existe e atravessa e divide sua vontade. Sente o peso da impotência e toda a dor que um homem pode sentir. Nada do que faça o livrará do peso de fazer. Nada que não faça o livrará do peso de não decidir. Sorri a paciência do encalço. Administra o jugo. É homem, afinal. Muda algo saber isso? Pensa o que distingue um homem. O que delimita o que lhe pertence e o que não. Sabe que não pode conter o vento, mas tenta. Nenhuma mulher pertence. Nenhuma mulher é livre. Nenhum homem vive sem a dor. Também as mulheres. Sabe apenas que a caixa ao seu lado, enquanto houver, é sua. E de lá extrai o segundo seguinte.



terça-feira, 22 de março de 2011

SOBRE DUNAS

Maria Alice junta um punhado de areia entre as mãos e deixa cair devagarzinho. Pensa em grãos de areia e em desertos. Na duna encantada nos recônditos de Jericoacoara, que, diferente das outras, nunca se move. Dizem que há um navio dentro dela. Um navio que encalhou e então a duna se formou sobre ele. Que durante a noite, entre feixes de luz, seres encantados festejam e vivenciam esse acaso. Então Maria Alice pensa em seres que vivem na areia. Calangos, répteis, insetos, minúsculas e invisíveis bactérias e homens. De todas as raças. De onde ela agora está, vê a multidão que caminha para subir a duna do Por do Sol. Há muitos anos ela estava em outro lugar e lentamente foi caminhando. Ouve alguém dizer que o mar está comendo a duna, mas o que Maria Alice observa é o vento e compreende o amor da duna. Sabe que ela é quem está se dando ao mar. Ele a quer e ela quer ser dele. Então o vento venta nela e devagarzinho ela vai. Que nem o punhado de grãos que escorre de suas mãos. A moça pensa no que lhe escapa. Naquilo que não é desejo dela e nem de ninguém. É simplesmente a ação do vento sobre ela. Ação que espalha seus grãos e tudo que pode haver de solúvel. Maria Alice é solúvel em água. Dilui-se e recompõe-se pelas mãos dos mistérios que a fazem ventar. É por isso que ela se espalha enquanto pessoas sobem a duna para ver o sol cair no mar. Lembra do navio dentro da duna que não se move e que por isso serve de referência aos pescadores. Pensa que referência é algo que não se move enquanto o homem vai mudando de lugar e então lembra quando rodopiava de mãos dadas com Josué. O mundo todo girava enquanto um morava no olhar do outro. Amparavam-se. Agora tudo virou essa areia que escorre de suas mãos. Maria Alice é duna que se entrega pouco a pouco ao mar. Vai mudar de lugar e de forma. E ela será ela mesma e será outra. Talvez porque a areia se forme pela erosão das rochas, caiba ao vento e a água a tarefa de sedimentá-la. Dar a ela estrutura e tudo que lhe compõe: sílica, quartzo ou recifes de coral. Até sua textura diz dela e dá pistas sobre a distância que percorreu. Leu certa vez que quanto menor o grão, mais fácil a duna é transportada e de mais longe vem. Maria Alice parece saber que o que quer que forme e mova as dunas é ação sobre elas e não o contrário. Uma ação combinada de fatores que ela chama de desejo e os cientistas de saltação, arrasto e suspensão. Foi desejo, ela diz. Desejo do vento. Mas sabe também que o tamanho e a forma dependem da praia. Se a praia tem pouca inclinação, mais areia chega à costa e mais dunas são formadas; se a inclinação é acentuada, mais areia é tragada de volta pelo mar, e as dunas são menores. Dunas e Maria Alice são ecossistemas com incontáveis organismos e saberes. De flores de aroma suave a pequenos roedores, cobras, lagartos e até o girassol, que se adaptaram à vida na areia. E protegem-se mutuamente. Talvez por isso certas dunas cantem. Pela vida que vibra nelas. Praias, dunas e vidas se precisam.



domingo, 20 de março de 2011

VERA
Vera, a professora de inglês que mora no 508, disse para Isabel sobre sua zanga. Culpou Eliseu por tudo que houve na história deles. Mas deixou claro que não guarda rancor. Parece insensato da parte dela, mas Vera, embora esteja se virando mal e porcamente com o dinheirinho que entra das aulas, tem formação em física e sabe, dentro dela, que isso não é uma condição estática. Ontem, por exemplo, pensava no princípio da incerteza. Sabe que por esse princípio não é possível se ter a certeza da posição e da velocidade de uma partícula, simultaneamente, e que, quanto maior a precisão com que se conhece uma delas, menor será a precisão com que se pode conhecer a outra. É este o princípio que está na base da mecânica quântica. A partir desse conhecimento ela se sente naturalmente impelida a ver o mundo, as coisas e as pessoas por outra ótica. Diz: não tem jeito, conhecer a física quântica mudou quase tudo que eu sabia. Até a imagem de Eliseu. Pois se em 1919, o cientista alemão Werner Heisenberg definiu esse conceito, quase 100 anos depois isso não pode ser negado por ela. Então, quando Eliseu escureceu tudo que ela pensava saber das coisas e ela se viu afundar no que, cotidianamente lhe parecia areia movediça, começou a buscar esse conhecimento. Pelo princípio, a forma mais óbvia de se conseguir medir com precisão a posição e velocidade de uma partícula seria fazer incidir luz sobre a mesma para se ter a indicação de sua posição. E assim fez. Começou a pensar em tudo que Eliseu iluminava para ela. Como se o rapaz pudesse mesmo ser foco de luz. O que ela não contava, ou melhor, o que ela não considerou a princípio, foi que a quantidade de luz sobre as coisas que ela começou a ver pudesse perturbar e alterar suas posições de forma absolutamente imprevista. Lembra-se da física tradicional newtoniana. A Física Clássica. Através dela seria possível, considerando-se a posição inicial, calcular suas interações e prever  que ocorreria. Mas qual será a posição e o momento exato das coisas? Pode haver uma fórmula que explique e equacione o princípio da incerteza. Heisenberg que o diga. Mas como equacionar e calcular as imprevistas interações? As mudanças das coisas após o foco de luz e a nossa própria mudança? Pensa que a partir daí é só mistério que há. E talvez um efeito dominó... Mas o que haverá depois da queda da última peça? Uma função de 2° grau? Uma parábola? Porque assim o mínimo rende o máximo? De uma migalha a gente faz um bolo de noiva? É. Substancialmente é isso. Não importa o que a vida te dá, mas o que você faz com o que a vida te dá. Pergunta-se se isso é Sartre ou não é. Vera pensa que seria melhor ter estudado filosofia do que física. Talvez então pudesse dar mais respostas para as coisas, ou, quem sabe, fazer mais perguntas (o que importa são as perguntas). Talvez então não estivesse ganhando merrecas dando aula de inglês. Talvez Eliseu nem existisse. Fosse uma projeção dela mesma. Nesse caso, a zanga seria com ela. Seria fruto da sua insatisfação. Mas isso é filosofia ou não? De qualquer modo, descarrega a cartela de tranqüilizante no vaso sanitário, puxa a descarga e corre tomar um antiácido. A efervescência há de lhe abrir algum caminho enquanto a Casa de Pão cheira um delicioso frango assado.

sexta-feira, 4 de março de 2011

ANA JÚLIA e as coisas.

No banco do ônibus, Ana Júlia vê as imagens correrem pela janela. As imagens que estão passando e ficando. Ela está indo. De quando em quando torna os olhos para o livro em seu colo. Para as palavras que entram nela e se alojam. No mormaço, um cachorro esgueira-se em frente ao bar e se enamora dos frangos atravessados nas hastes sobre o fogo. Ela pensa no fogo e em tanta coisa. Apesar da força de seus braços e da agilidade das mãos, pensa nas coisas que não pode segurar. Pensa em Hugo. Nos braços de Hugo. A despeito de tudo que pode constranger um homem, ele segurou a casa que queria ir embora com o vento. Um homem. Uma casa. Um homem e suas sapatas. Tudo que pode segurar alguma coisa no chão. Que pode sustentá-la ou não. Ana deixa-se encobrir pelo escuro do túnel e pensa na alternativa de escavar para atravessar o que se interpõe. O homem é capaz de atravessar pedras e mares inteiros para chegar onde deseja. Onde precisa. Pergunta-se se ações vêm do desejo ou da necessidade. E se o dono do bar soltasse uma das hastes com os frangos enfileirados e por descuido todos eles restassem no chão? Quem conteria o desejo do cachorro de lançar-se sobre eles? Quem? Pensa se fome é desejo ou necessidade. Acha que a fome de Hugo alimenta a sua. Ou é o contrário? Uma fome alimenta a outra e cria um cordão de energia que busca a saciedade. É preciso andar sobre ele. Sentir e conter o pulso do vento que tenta jogar o corpo para um lado e outro. Lados são coisas que colocam o homem numa posição tal, que ele pende. Pende e cai. Então pensa no que faz o meio restar como alternativa. Ela não quer cair. Ninguém quer. Desce do ônibus, em meio ao dióxido de carbono e os carros. Coloca-se na exata dimensão do que é. Coisa entre outras coisas. E mesmo que ela consiga se estreitar entre o que era e o que será, há o que é. Igual ao desejo de pular no abraço dele. Se enrolar em seus braços. Estreitada entre o desejo e o pulo. E mesmo que aquele cachorro, depois de abocanhar alguns frangos sob o olhar atônito do homem, latisse pra ela, ainda assim não estaria ali. Só porque faz tudo certo. A dieta de carboidratos, muita proteína saudável e o preparo físico. Ana Júlia malhou muito, dormiu oito horas todos os dias. Acordou cedo e seguiu, à risca, todas as orientações. Nenhum dia um vacilo que desviasse seu desejo. Pensa em sua mania de perfeição. Em sua estratégia de distanciar-se das coisas para poder vê-las melhor. Tudo escorre e pede confronto com nossos subterrâneos. Até o amor. Agora, os pés na calçada lhe dão a justa medida da distância que quis. Muitos quilômetros. E nem que ela chamasse um táxi ou saísse correndo para o aeroporto, poderia voltar atrás. Abrir o abraço. Não poderia. Na soleira da porta do bar, observa uma mulher na calçada. Sua mão estendida. Talvez o suco que agora não lhe desce pela boca fizesse bem à mulher. Talvez o suco lhe descesse pela goela com todas as subjetividades de Ana Júlia. Talvez nem a mulher as quisesse e talvez preferisse dizer não a ter que engolir uma falta de ação que não lhe pertence. E nem que Ana tentasse desculpar e entender a falta de ação alheia, nem assim compreenderia a sua. E nem que o cachorro saltasse sobre os frangos e agora lhe aparecesse pedindo água ou um simples afago, nem assim ela saberia.

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