sábado, 26 de fevereiro de 2011

ONDE MORAM AS PAIXÕES

Renata está sentada no banco do carro. Parece confortável. O ar condicionado está ligado, mas ela mantém seu vidro quase todo aberto. Os de trás abre apenas uma fresta. Ela, que não gosta de ambientes climatizados, pensa que assim o carro fica naturalmente ventilado e fresco. Escapa para o ar a fumaça do cigarro que ela traga. A fumaça que entra nela e que depois solta. Sabe que um tanto fica dentro dela. Dizem que se aloja nos pulmões, na corrente sanguínea. Mas ela acredita piamente que se aloja no seu cérebro. Sabe que a massa dentro da cabeça tem sulcos e giros. Acredita que a fumaça se aloja nos sulcos. Nesse mesmo lugar onde acredita que as ideias fixas moram. Você acalenta e acalenta certas ideias e então elas vão aprofundando esses sulcos. Caem lá e vão dando dimensão para esses tantos vazios. O castanho do olho de Renata resvala fora da direção que o carro toma. A compreensão é encantadora. As ideias moram nos sulcos. Criam rasgos na massa do cérebro. Que podem ser mais ou menos profundos. As fissuras. A maior delas divide o cérebro em hemisférico direito e esquerdo. E talvez seja por isso que certas ideias nascem mortas. Pelo antagonismo dos lados. Olha pelo retrovisor. Pensa em Pedro. Essa noite mais uma vez sonhou com ele e pensa o que esse homem tem dela. Tem vontade de estreitá-lo na parede e mandar a pergunta: O que você pegou de mim, Pedro? O que é meu e você tomou? Devolve de uma vez o que é meu e preciso encontrar. Eu preciso encontrar o que é meu e está com você. Preciso, entendeu? Interrompe o monólogo sem sentido e pensa nele. Pensa nele. O pensamento caprichoso desenha o sorriso de Pedro e também o dela quando ele aparece. Deriva. O sorriso que dá para ele se desenha na boca, mas pensando sobre as bases cerebrais, agora atina com a idéia de que sorrisos também moram nos sulcos. Nascem ali e de lá acionam os feixes que promovem o desenho da boca. Pensa que o sorriso dele para ela também deve morar no cérebro. Nos sulcos do cérebro dele. Onde moram também as idéias que ele tem e que depois acionam feixes que movimentam sua boca para falar. Também para calar. Sulcos e giros. Palavras e silêncios. Percebe que tudo se encaixa perfeitamente. A fisiologia da cumplicidade. As palavras que não têm força para movimentar as bocas. O silêncio que as emudece. Dizem que cerca de dois terços da área ocupada pelo córtex cerebral estão “escondidos” nos sulcos. Ela pensa em dois terços das suas ideias escondidas nos sulcos. Ideias escondidas. Fixas e escondidas. Dentro do carro, na estrada em que o carro desliza a velocidade sobre o tempo de Renata, ela carrega seu desejo entre tantas coisas. As imagens dos sulcos, as idéias e as palavras que saem ou não das bocas. O retrovisor mostra para ela o que vai ficando para trás. Seja o que for, ela sabe que desaparece quando fazemos a curva. Será? A verdade é que no cérebro, tudo funciona em rede onde todos os elementos exercem papéis regulatórios. E isso, como outras coisas no mundo científico, necessita de maiores explicações. De qualquer modo, aumenta o som do rádio para cantar com Bem Harper:

“That's it

There's no way

It's over, good luck

I've nothing left to say

It's only words

And what l feel

Won’t change”

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

MARIA E O ARQUITETO

MARIA E O ARQUITETO



Maria anda muito insatisfeita com as coisas que lhe escapam. Pelas mãos e dedos. Olhos e ouvidos. Pela boca que emana silêncios, sorrisos, frases certas e incertas. Repreende-se. Nem sempre é assim. Às vezes vai certeira pro chute. Com ou sem delicadeza, enfia o pé e manda pro gol. Faz cesta, mesmo sendo tão pequenina. Sobe na rede, corta a bola e deixa o adversário estacado. Mas logo depois lhe ocorre a pergunta: Por quê? Eu precisava tanto dar aquela resposta, falar daquele jeito? Mas o que lhe parece mais insuportável são as respostas, certas, erradas, doces ou não, que só lhe vêm na boca ao fim e ao cabo das situações. Na hora, apenas calou, sorriu, falou qualquer bobagem. E o incrível é que são ótimas respostas! Seriam! Se lhe ocorressem a tempo! Mas levam horas, meses, até anos. Maria anda farta de arrastar o peso de não ter, na hora certa, respostas porretas no bolso da casaca. Exausta mesmo. Ainda hoje se lembra de quando ela e os amigos conversavam em torno da cúpula de uma estrutura geodésica sobre a mesa da sala. Versátil, leve e resistente, ela recebia a claridade do sol por entre as frestas . O formato esférico somado aos triângulos que compõe a estrutura, possibilitam que qualquer força aplicada no domo possa se distribuir igualmente até a base. Nesse dia Pedro perguntou a ela, entre todos aqueles espaços, qual ela preferia. Ela disse: tudo, né? Senão for a estrutura toda não tem graça! Ele sorriu meio bobo e disse que tudo não dava. Depois veio o silêncio. O vácuo. Agora, anos depois a cena ainda lhe parece viva. Pensa que para Fuller, o inventor, a estrutura geodésica foi pensada como abrigo capaz de fazer frente às necessidades de quem a habitasse. Para alcançar esta meta, Fuller desenvolveu como suporte teórico da sua experiência empírica, a "geometria energético-sinergética": uma base teórica que envolve conceitos diversos onde filosofia e geometria se entrelaçam. E onde "sinergia" ou o comportamento da totalidade desse sistema estrutural, não é previsível a partir do comportamento isolado de suas partes, ou seja: “o todo é maior que a soma das suas partes". Talvez por isso, anos depois da pergunta de Pedro, ela agora diria apontando alguns triângulos daquela estrutura: Essa parte, se por aqui entrar o sol da tarde e a noite, da cama, a gente puder ver a lua. Sabe que ele teria ficado sem chão. Ela idem. Ou não. Mas ela não disse naquele dia... E tudo ficou diferente depois. O todo é maior que a soma das partes. E absolutamente, uma outra coisa. De qualquer forma, pensa agora nas suas necessidades de habitar, no planeta azul que ela e Pedro ainda habitam e que ainda entrelaça filosofia e geometria... O todo pode ser maior que a soma das partes.



sábado, 12 de fevereiro de 2011

Manoela e a beleza das coisas

Manoela olha as coisas tão bonitas e pensa se são bonitas realmente ou ela é quem assim vê. Tem os olhos tão acostumados que ultimamente tem se debruçado sobre esse costume. Sobre a inocência. Que inocência? Se eu pudesse parar de escrever eu perguntava para Manoela. Perguntava isso para ela. Que inocência? Outro dia mesmo uma voz lhe soprou nos ouvidos essa dúvida. Edgar é tão bonito. Uma alegria que sobe da boca para a linha do nariz e enverga os olhos. O olhar que ele tem fica bonito. Fica ou é? Eu grito daqui: Ora, ora, Manoela. Não vê que é apenas seu olhar? Como a letra de música: “A tristeza de um olhar, vem de tanto olhar, vem do outro olhar”. A alegria também. Não vê? “Como assim?”. Eu queria cantar para ela: “pelo olhar pode haver um motim”. Nada. Manoela sequer me escuta. Como poderia? Está tão absorta. Isso começou a acontecer, precisamente, quando ela não quis usar os óculos. Para quê essa bengala? Para quê me pendurar num foco que não é meu, mas dos óculos? Vejo o que me é dado ver. Ajeito a posição, meneio a cabeça, afasto e aproximo. Eu aproximo o que existe ao que imagino e quero enxergar. Há algum mal nisso? Há Manoela, há sim, digo baixinho. Ela retruca: outro dia eu caminhava e ao longe, bem distante, vi um cavalo. Era muito digno o animal. Tinha pose. Tinha tino e atitude. Tinha tônus. Conforme fui me aproximando, vi que não passava de um pangaré. Um lindo pangaré. As dores e o cansaço debruçados sobre a fronte e o lombo. A pele e o pêlo escamados. Mas era tão bonito no seu descansar. O olhar derramava uma sabedoria eqüina. Enquanto escrevo quero que ela veja onde desliza. Onde exatamente é o ponto onde deriva. Sai da visão para a imaginação. Mas Manoela capta grafite, bico de pena e a rapidez da esferográfica. Capta até mesmo o toque dos dedos sobre as teclas. Capta o desejo da escrita e se antecipa ao que penso para ela. E nesse existir vai me impressionando. Sou autor ou retratista? Sou autor e ela me dirige. Estou entregue ao olhar de Manu e repenso minha própria dinâmica. Estar imiscuído no intenso da solidão é o que propicia que Manoela tenha esse impulso. Esse pulso sobre mim. Eu aqui, tão confortavelmente instalado, acato. Manoela é Manu e eu vou deixando ela expor para mim coisas que não posso enxergar. Então Manu mostra. Ela mostra e eu acato porque ela é dona do meu tempo e escreve a mim, que estou tão absorto. E a realidade dela vai fixando a minha e o meu olhar. Vai mostrando a insensatez disso tudo. Mas de que outro modo eu daria voz ao que está submerso? O quê está submerso? Sei que a solidão, Manu e eu nos necessitamos. Um outro eu do meu próprio eu que é múltiplo se apresenta através dela, se cristaliza nela. Eterniza-se, eternizando a mim e minhas aflições. E eu sou mais. Sou outro.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

MERGULHO (O segredo de Eugênia)

Em frente ao quiosque do chaveiro, em meio ao movimentado da cidade e o calor, o rapaz diz para Eugênia que chaves antigas, daquelas de quarto, têm que ser feitas à mão. O artesão tem que desenhá-las à mão. Eugênia pensa na palavra esculpir. Pensa em chaves e segredos que podem ser esculpidos. Detém-se nos segredos. É preciso que o artesão se detenha também sobre eles. Que segredo? A moça, com alguns anos de estrada e forte senso de observação, pensa o que desconhece sobre segredos. O que é o segredo que o esculpir pode desenhar? O que o homem talha no metal? Dentes. Pensa que dentes cravados na carne são segredos. Dentre os segredos que uma chave pode conter está o formato. Há que ter um perfil. E mais. Ser colocada na posição correta. Toda uma conexão de pinos e reentrâncias. Quando eles se alinham adequadamente, a trava consegue se encaixar nelas e liberar o gancho. Quando inserida na fechadura, a chave empurra os pinos de trás até à posição correta, permitindo que se gire a chave e destranque a porta. Sabe lá desde quando trancam-se as portas e como isso era feito. Mas os segredos, estes existem desde sempre. Ela está certa disso. Eugênia, que não sabe de nada, mas desconfia de muita coisa, sabe apenas que São Pedro é o chaveiro do céu. E que entre o sim e o não tem um vão. Um grande vão. Ela está nele. Edgar, Luis e Eleonora também. Até o menino recostado em seu silêncio está. Pensa nas coisas por detrás. O que sustenta um segredo? O rapaz ao seu lado pergunta para ela com os olhos esgarçados. O que está escondido pode sustentar um segredo? Não sei. Os enigmas sim podem sustentá-los. Nada se sabe deles. É preciso muita arte e maestria para abrir essas portas e descobrir. É preciso esculpir no metal e depois girá-lo lentamente na posição correta. Tanta insistência nesse pensar faz Eugênia derrapar num todo que a atravessa. Perfura. O todo quer descobri-la e ela precisa esculpir as pedras do seu caminho. Talhar. Mesmo que seja inútil. Melhor fazer, ela pensa. É por isso que aprendeu e não cansa de fazer curativos no vazio. Nos vãos que são a falta daquilo tudo que aparece e que não é. O que é escorre dos olhos que disfarçam o que não tem disfarce. O indisfarçável. Mas não são todos que percebem esse escorrer. Esse caldo que esvai pela sarjeta, pela areia da praia e se mistura às águas. Eugênia vê. Talvez Edgar, talvez Pedro e Eleonora. Talvez o menino silencioso que observa tudo. Talvez Eugênia esteja prenha de mistérios e enigmas. Prenha de segredos que quer guardar. Quer? Escuta o poeta Antonio Cícero dizer que “em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa vista”. Por isso ela quer dizer. “Para guardar-se o que quer guardar”. E ela quer guardar todos os vôos. Todos eles. Só a morte pode escancarar o desenho das chaves e os segredos. Ela pensa que enquanto estiver viva, vai preferir sentir a dor. Qualquer dor. Sabe que captar e guardar segredos gera mais segredos. Outros segredos. Segredos que guardam segredos. Guardam enigmas. Como as palavras. É por isso que Eugênia mora na fronteira e exibe o silêncio debaixo do sorriso. O indizível que a habita.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

TEODORA SABE DAS COISAS
Teodora é moça que sabe das coisas. Sabe e aproveita para “se achar”. Assim mesmo: sem o menor pudor. Humildade? Ah, não senhor. E já que sabe tanto, diverte-se. Olha-se no espelho e ao invés da pergunta “Cinderela” afirma olhando bem dentro dos próprios olhos: Eu sou sim a última bolacha do pacote. Sou mais: sou o gás da Coca-Cola. E ri. Fartamente. Daqui de onde a espio, tenho que admitir: Ela é ótima! Não é à toa que se arvora, sobe no salto e fica por aí dando lição de moral em muita criatura. Feito outro dia que xingou e xingou o rapaz que arremessou uma latinha para fora do carro. Uma pessoa que arremessa latas ou qualquer coisa pela janela do carro não tem a menor consciência de educação e cuidado com o meio ambiente. Eu acho que ela está certa. Já que a maior parte das pessoas é tão condescendente com certos absurdos, ela bota a boca no trombone. E trata de deixar isso muito claro quando acontece perto dela. Também ficou tiririca com Isabel, que sempre faz ares de charmosa e tem sido sempre grosseira com garçons, frentistas e atendentes quando saem jutas. Então foi lá e soltou o verbo. Se uma pessoa é toda charmosa com você, mas grosseira com alguém que lhe presta um serviço, não tem como ser uma boa pessoa. E disse isso para Isabel que foi ficando roxa e vermelha com o inusitado da coisa. Aliás, anda se livrando de pessoas que falam muito de si e não abrem espaço para ouvir o outro. Essas, não estão a fim de compartilhar nada!  Livra-se delas. Mas o que a tirou definitivamente do sério foi Nestor! Pois não é que o cabra, num só movimento, roubou seu coração? Ah, não! Olha aqui, Nestor, meu coração é meu. Meu, ouviu? Você fica aí dizendo que me quer, mas não é capaz de um só ato significativo e honesto? Pois se o que você quer é ver a coisa rolando frouxa, rolando mole, fica com isso. Toma aqui essas balinhas. Tem chiclete também, quer? Cabra safado. Pega e some. Assim, com um só gesto, me livra de você e dessas balinhas que recebi de troco na lojinha de R$1,99. Recebi porque o cara me pegou num dia ruim e não pude reagir como gosto. Acho um absurdo! Que mania essa de dar balinha de troco! Ah! Se eu chego lá com um saco de balinhas para inteirar o dinheiro do abajur. Aí eu quero ver! Aliás, tá aí uma coisa que preciso fazer qualquer dia. Mas é isso, Nestor. Pega ou não essas balinhas e me erra. Vê se me erra de uma vez. Pra você eu repito o Garfield: “Você não passa de um inseto espatifado no para brisa da minha vida”. Pronto. É isso. Falei e tá falado. Você gosta de chegar e fazer bonito? Então, dessa vez fica pra mim. Arrasei e fui. Fui, Nestor. Da ponta do lápis, de novo eu admiro. E lembro Raul: “Eu que não me sento/No trono de um apartamento/Com a boca escancarada/Cheia de dentes/Esperando a morte chegar...”. Não, não. Há que se reagir. E como o poeta vou de verbo intransitivo: “Teadoro, Teodora”.

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