sexta-feira, 27 de maio de 2011

O VOO DE LÍDIA



                                                          ilustração: Marcelo Oliveira


O VOO DE LÍDIA

Lídia, que acaba de despachar suas malas na esteira da companhia aérea, pensa em Pedro e caminha para o café. Ela administra esse mundo que é tão seu. Nenhuma preocupação que risque seu rosto com linhas que não chegam antes do tempo certo. Sabe que há tempo para tudo. Até para as rugas. Tem o olhar de quem conhece essa afirmação e, nele, a paciência para tudo que ocorre a seu tempo.

Foi assim quando deixou de restar perfumada no balanço da rede. Levantou e saiu. Tem Pedro tão dentro dela. Talvez só ele saiba que ela, quando gorjeia, fica nua entre o choro e o riso. Talvez. E talvez, por sentir-se tão inteiramente nua, é que ela finge. Ela se esconde em tudo que veste. Até nas máscaras. Nas tantas que é. Quando canta e sua voz escorre, se vê deslizar por ladeiras, girar em saias e encontrar as águas. Caminhar rios inteiros e desaguar no mar. Sente na boca o sal se misturar ao doce. Lídia é salobra e tem correntes frias e quentes. Tem micro-organismos. Por isso sorri a vida que há nela.

Queria ver Pedro deslizar na água e terra que ela é. Ilha. Deslizar no lodo que há por baixo. Tão perto, observa os receios dele. Os receios que a sustentam e permitem que ela possa mentir tão assustadoramente. Às vezes, escuta a culpa espiá-la pela janela. Lídia não sente culpa nenhuma. Apenas desvela sua presença. Sua ronda. Um dia a culpa saiu da janela e bateu à sua porta. Lídia destrancou as chaves e a convidou para entrar. Ofereceu o aconchego da poltrona e apoio para os pés. Ofereceu café. Tornaram-se grandes amigas. Entende? Já Pedro vê e não vê. Nodoa. Ora atenta, ora pensa que esquece. Lídia sabe que certas coisas não se pode esquecer. Deixa-o olhar para ela e estar suspenso. Chama para sair. Ri. Chora. Mente. Sabe que enquanto houver sol ela sempre poderá deitar seu corpo na areia quente. Dourar e aquecer. Sente o sol metabolizar suas enzimas e turvar seu pensamento. Quanto à culpa, depois de tanto tempo de confidências no sofá regadas a café, deu um basta. A verdade é que está muito bem, obrigada. Se Pedro quer pairar nessa névoa absurda, que assim seja.

Ela prefere o sol. A claridade do sol. Sente seus raios atravessarem o escuro dos óculos e iluminarem as letras que moram nela. As letras de seu nome. Todas juntas demarcam o que disse a astróloga diante das cartas tantas espalhadas pela mesa: “Moça, você é uma contradição! Joga com os opostos em todas as instâncias da sua vida. E o melhor, você não acha isso ruim”. Lídia sorri o que dentro já sabe, mas deixa acontecer o efeito de uma afirmação externa que vem supercolar ao que já estava dentro. Adesivar-se à pele. Ela gosta do jogo.

Nasceu para estar diante da malemolência que permeia o sim e o não. Talvez não queira mesmo saber de nada definitivo. Diz que definitiva é a morte e enquanto ela viver quer o provisório, o que pode mudar sem hora marcada. O que pode assustar. Talvez por isso ela caminhe certa e incerta pelo saguão. Talvez por isso desvie e atravesse a porta que abre ao seu pisar para fumar um último cigarro antes do embarque. Talvez por isso ela acene para o táxi que passa vazio e entre sem dizer palavra. Sabe que precisa abrir espaço para as coisas. Abrir os pulmões para o ar e a fumaça. Dar sorte para o azar.











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