sexta-feira, 26 de agosto de 2011


O BALANÇO DE CECÍLIA

Quando a mãe de Cecília perde sua calça preta e a carteira de motorista, não sabe se a carteira está no bolso da calça ou mesmo se estão no mesmo lugar. Sabe apenas que estão perdidas. Procura em lugares possíveis. Também nos impossíveis. Telefona para os filhos e perscruta com afinco seus últimos 6 meses. Nada. Conversando com Cecília, diz: “Filha, olha bem aí na sua casa que eu posso ter deixado cair atrás de algum móvel. Ah, sei. Você arrastou todos os móveis na limpeza da última semana... E aquela bolsa que eu usei quando estive aí? Você lembra? Ah, andou vendo isso ontem mesmo? Não achou nada... Está certo. O quê?”. Ouve a filha dizer o quanto isso é simbólico. “Não vê a contundência do desejo que está expresso nesse sumiço, mãe? A calça, que guarda suas pernas que andam, está desaparecida junto com a carteira de motorista, que é seu passaporte para dirigir e dirigir-se aos lugares. Elementar, caro Watson. É um claro indicativo de que calça e carteira estão juntas na mesma empreitada. São átomos se movendo para mostrar a direção que você deve tomar. Ir embora da sua vida para outra vida a ser conquistada. Esquece o sumiço das coisas e pensa nisso. É muito claro, mãe. Claro e simbólico”. Riem-se. Cecília é moça que não gosta de meio-termo. Meia-ação, meio-honesto, meio chateado. Gosta de sentimentos inteiros. Por isso não cansa de afirmar aos seus alunos que não existe essa bobageira de não se usar todo o potencial do cérebro. A cada momento e para cada coisa, usamos 100% do nosso cérebro. Agora, qualitativamente, isso pode sim variar. De modo que ela gosta mesmo é da inteireza de Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim como em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”. E por mais que ela seja recoberta de vazios de todos os tipos e ria muito ao acreditar ser muito mais que um barco furado, assume também a inteireza de seu desejo. Diz: “Sou um barco metralhado”. O mesmo quando admite sua paixão por Fred e sonha carnavais inteiros com ele. Os dois deflagrando ruas e êxtases. Chora a falta quase absoluta que o sorriso dele lhe faz com toda a circunstância de seu exagero. “Morro sem ele”. Mas para não se evadir completamente da brincadeira que ela adora de por e tirar os pés do chão, vai vivendo feliz e triste, inteira e despedaçada e de muitos outros controversos modos. Vai domando a vida no laço e se ajeitando com a flutuância das coisas. Vai rindo a vida que não é sempre engraçada. Quase todas as tardes ela senta em sua cadeira de balanço. Uma cadeira de diretor com balanço onde sua avó sentava e dirigia, balançando, a vida da família inteira. De onde mais poderia dirigir os espetáculos que ela e Fred descortinam? Agora mesmo ele está contando para ela o seu dia de trabalho, e tem sempre um momento no meio da fala em que ele desata a discursar. Então Fred fala tanta besteira que não há outra maneira de resolver a situação que não seja tomando medidas de emergência: súbito ela inclina na cadeira e beija-o emergencialmente para lhe calar a boca. Riem-se e ela volta a balançar enquanto ele retoma de onde se perdeu só para poder se achar no riso dela.

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